São Paulo, terça-feira, 03 de maio de 2005

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VIZINHOS EM CRISE

Ministro admite atrito e vê "déficit institucional" no Mercosul

Governo argentino ataca política externa brasileira

SILVANA ARANTES
DE BUENOS AIRES

O governo do presidente argentino, Néstor Kirchner, lançou ontem uma ofensiva contra a política externa brasileira.
O ministro das Relações Exteriores da Argentina, Rafael Bielsa, admitiu atrito na relação dos dois países, desdenhou a Comunidade Sul-Americana de Nações -projeto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva- e cobrou "resposta satisfatória" do Brasil nas negociações de comércio bilateral.
"Temos um déficit institucional no Mercosul que achamos que deve ser solucionado antes de dar vazão à Comunidade Sul-Americana de Nações", disse.
A Argentina classifica como "déficit institucional" a existência de "assimetrias econômicas" entre os países do Mercosul. O argumento é que, em troca da liderança, o Brasil deve investir no desenvolvimento de seus sócios (Argentina, Paraguai e Uruguai).
"Vamos insistir [no combate às assimetrias], apesar de que o que estamos pedindo não é nem mais nem menos do que o cumprimento de uma norma [o Tratado de Assunção, que fundou o Mercosul]", disse o chanceler.
Depois de dizer que "sempre há idas e vindas" na relação de Brasil e Argentina, Bielsa disse: "Sem dúvida, esta é uma vinda". As declarações do chanceler foram dadas de Washington a rádio de Buenos Aires. Ele participou ontem da eleição para a secretaria-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), vencida pelo chileno José Miguel Insulza.
No fim de semana, Bielsa se reuniu com seis veteranos embaixadores argentinos, para discutir o rumo que deveria tomar a relação diplomática com o Brasil.
A mudança de atitude teria sido solicitada pelo presidente Kirchner, supostamente farto das iniciativas de liderança regional de Lula, segundo divulgou a imprensa argentina.
"Se há um lugar na OMC [Organização Mundial do Comércio], o Brasil quer; se há um lugar na ONU [Organização das Nações Unidas], o Brasil quer; se há um lugar na FAO [Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação], o Brasil quer. Até o papa eles quiseram eleger", disse Kirchner a "homens de confiança", diz o jornal "Página 12".
Procurada pela Folha, a assessoria de Kirchner disse que "não confirma nem desmente" a afirmação. A Embaixada do Brasil em Buenos Aires, em declaração oficial, negou o conflito.
"O diálogo entre o governo brasileiro e o governo argentino é fluido, próximo e franco. As matérias de imprensa sobre supostas divergências não correspondem ao nível de excelência e amizade que continuamos a observar em todos os contatos oficiais."

Estratégia
Segundo a Folha apurou, a diplomacia brasileira na Argentina considera que a retórica de Bielsa sobre o Brasil é carregada por boa dose de estratégia política interna.
O chanceler argentino é tido como a maior aposta de Kirchner nas eleições legislativas do próximo mês de outubro. A pedido de Kirchner, ele deve deixar em breve o ministério e se lançar candidato por Buenos Aires.
Com nomes de respaldo popular, como o de Bielsa e o de sua própria mulher, a senadora Cristina Fernández de Kirchner, o presidente argentino busca recompor sua base no Congresso e quebrar a hegemonia no PJ (Partido Justicialista) do ex-presidente Eduardo Duhalde (2002).
Duhalde articulou a eleição de Kirchner em 2003. Hoje, é seu rival na legenda peronista. O projeto de unir os países da região em torno da Comunidade Sul-Americana de Nações, ao qual Kirchner se opõe, foi impulsionado por Lula, em parceria com Duhalde.
A Argentina criticou o fato de, na mediação da crise política no Equador, o Brasil atuar com respaldo da Comunidade Sul-Americana de Nações, e não sob o guarda-chuva da OEA (Organização dos Estados Americanos).
Bielsa foi convidado pelo chanceler brasileiro, Celso Amorim, a acompanhá-lo na missão diplomática a Quito. O argentino recusou o convite.

Constrangimento
Na sexta passada, o episódio deu tom de constrangimento ao encontro de Cristina Kirchner com o ministro da Casa Civil, José Dirceu, e o assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia, em Montevidéu (Uruguai).
Em intervalo do encontro de partidos progressistas e governos do Cone Sul, Garcia avisou Dirceu que Cristina o esperava para almoçar. Dirceu respondeu que iria "depois" e falou durante 30 minutos com a imprensa brasileira. Terminaram almoçando em mesas separadas.
Garcia não quis comentar a decisão de Bielsa de não viajar a Quito. O chefe de gabinete de Kirchner, Alberto Fernández, escalou o embaixador Eduardo Sigal, para explicar a decisão.
Sigal, que é subsecretário de Integração Econômica e Mercosul, disse que Bielsa tinha viagem previamente agendada para a Guatemala e para os EUA.
Duas semanas antes, em Brasília, o embaixador foi mais direto. Na reunião de chanceleres da América do Sul, à qual Bielsa faltou, Sigal advertiu: a Argentina quer avanços no Mercosul, não na Comunidade Sul-Americana de Nações.


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