|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
Arrogância solapa aliança estratégica
DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA
Demorou, mas veio. A
profunda contrariedade do
governo argentino diante
dos rumos recentes da política externa brasileira, amplamente conhecida nos círculos diplomáticos, explodiu em declarações do presidente Nestor Kirchner e do
chanceler Rafael Bielsa. O
Brasil atua nas crises venezuelana e equatoriana à revelia dos vizinhos, como fez
antes na Bolívia. Quer todos
os cargos disponíveis nas organizações internacionais,
da ONU à OMC, passando
pela FAO e, se fosse possível,
"até o Vaticano". Almeja
uma liderança sem contrapartida ou concessões. Não
leva a sério o Mercosul. Basta: "O que está em jogo é a
aliança estratégica bilateral",
na dura síntese de Bielsa.
A panela de pressão fervia
desde o início do governo
Lula, quando o Itamaraty retomou a campanha por um
lugar entre os membros permanentes do CS (Conselho
de Segurança) da ONU. A
campanha tornou-se, bem
depressa, o eixo orientador
da política externa brasileira,
subordinando às suas necessidades os princípios, os valores e os compromissos
proclamados pelo Brasil. O
apito soou no início do ano,
ativado pelo ensurdecedor
silencioso oficial brasileiro
diante da renegociação da
dívida externa argentina,
que mal ocultava o boicote
de autoridades do Ministério da Fazenda com trânsito
livre no FMI. Em Buenos Aires, ninguém debate a avaliação de que o Brasil traiu o
compromisso básico de solidariedade com o aliado supostamente estratégico.
Os argentinos estão certos.
Nos últimos dias, analistas
tentaram justificar a arrogância do Itamaraty ressuscitando argumentos geopolíticos sobre o peso territorial, demográfico e econômico do Brasil e a extensão
de nossas fronteiras políticas. Atrás do vazio da argumentação, estão as raízes da
política desastrosa conduzida nos últimos dois anos.
O governo Lula e o Itamaraty de Celso Amorim beberam na fonte sempre disponível da geopolítica militar e
recuperaram o conceito de
potência média e a noção de
"liderança natural" na América do Sul. Esse é o arcabouço teórico da campanha histérica na direção do CS, que,
por sua vez, exige uma meticulosa articulação entre Brasília e Washington. O Haiti
foi o primeiro fruto dessa articulação. As iniciativas de
mediação unilateral e informal nas crises andinas são o
segundo fruto. O desprezo
às consultas com a Argentina, mera conseqüência.
Lula proclama que seu governo é o início verdadeiro
da história do Brasil. Amorim, com outro palavreado,
diz a mesma coisa sobre a
política externa brasileira.
Mas ele não combinou isso
com nossos parceiros, que
não têm nenhuma obrigação de esquecer o passado. A
Argentina lembra que, ao
caminhar rumo ao Mercosul, aceitou uma liderança
condicional e qualificada do
Brasil. Essa liderança não é
"natural" e, por isso, deve ter
contrapartida: a valorização
dos interesses nacionais argentinos, a formulação conjunta de posições estratégicas. É isso que Kirchner e
Bielsa cobram.
Texto Anterior: Governo argentino ataca política externa brasileira Próximo Texto: Janio de Freitas: Pinga-pinga Índice
|