São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2006

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JANIO DE FREITAS

O loteamento


Não esquecer o que Lula disse sobre como se deve montar um governo permitirá avaliar precocemente a sua gestão

PERDEU-SE NA apatia geral uma peça de oratória particularmente valiosa nas obras completas da retórica presidencial de Lula. Desde que torceu o pé e o engessou, por alguma razão obscura o presidente não dá aos seus improvisos o tratamento habitual. Mas o discurso mais relevante dos últimos tempos contava, ainda, com os dois pés e a cabeça em plena forma para atacar o improviso. E outra coisas também.
Foi o discurso, de propósitos confessionais e didáticos, feito em encontro com seus 16 aliados eleitos ou reeleitos governadores. Foi a reunião que Lula não conseguia decidir se fazia, para agradar logo os governadores eleitos, ou se adiava até depois das posses, para não desagradar os governadores atuais. As circunstâncias decidiram por ele, como de costume, e a mídia ficou seduzida, não pelo discurso, mas por uma frase à margem: "Se alguém quiser fazer oposição a mim, faça em 2010, quando eu não serei mais candidato".
No discurso, Lula ensinou coisas muito úteis, das quais, porém, bastam aqui uns poucos exemplos, porque graças a Deus não vamos governar coisa alguma. "Convidar alguém para ocupar um cargo", Lula revelou, "é muito fácil". Mas tirar alguém é tão difícil que, "nessa hora, é relação de chefe de Estado", não de amigo. Logo, um "conselho aos nossos governadores novos: montar um governo é 50% do sucesso do governo". E, se ele não nos ouve, do insucesso também. O que explica pelo menos metade do que levou o governo a manter o Brasil como recordista mundial em juros destruidores e, nas Américas, só melhor do que o faminto Haiti em crescimento econômico. Bem, e os outros 50%? Lula não ensinou. Talvez por achar que, estando ali, já expunha uma explicação viva.
Oferecidos vários ensinamentos assim profundos, chegou a parte que mais nos interessa, a nós governados. "Aprendi uma lição", começou o novo capítulo. Pausa. Suspense da platéia, mas valeu a pena, pela revelação que se seguiu: "A máquina pública, quanto mais eficiente ela for, quanto mais qualificada ela for, mais fácil será para o governante governar". Valia mesmo a pena o desperdício de tempo e dinheiro dos recém-eleitos para viajar a Brasília e ouvir as descobertas e orientações do presidente.
E então chegou o ponto a ser memorizado menos pela platéia do que por nós, governados.
"A gente tem que convidar as pessoas mais qualificadas para a função que o Estado brasileiro precisa. Ao invés de procurar apenas amigos, procurem quem está esperando uma chance. Vamos perceber que na máquina pública brasileira há pessoas da mais alta qualificação à espera de uma oportunidade."
Nas últimas semanas, a principal ocupação do autor de tais frases é negociar pedaços do governo com os grupos antagônicos de peemedebistas, para formar a aliança PT-PMDB. A cada dia os peemedebistas, estimulados pela dependência confessada por Lula, aumentam um pouco mais o preço de um dos seus grupos. Ao que os outros, para manter a posição, logo acompanham.
As exigências vazadas, antes de encerrar-se a semana, já estavam em sete a oito ministérios, todos os cargos de nomeação nesses ministérios, presidência (Eletrobrás) e diretorias em estatais (várias na Petrobrás) e liberação assegurada de verbas orçamentárias apresentadas por peemedebistas.
Não esquecer o que Lula disse sobre a necessidade de montar cada governo com as pessoas qualificadas de que o Estado já dispõe, e que esperam uma oportunidade, tem dupla utilidade: permitirá avaliar precocemente o seu governo, tão logo anunciados os integrantes, e saber se Lula ainda merece algum crédito.


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