São Paulo, domingo, 04 de março de 2001

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JANIO DE FREITAS
Os princípios e os fins

Mesmo entre os que lamentam a inexistência de combate efetivo à corrupção, muito poucos chegariam a considerar que esta deve ser a prioridade das prioridades nacionais. E, no entanto, é assim: só o extermínio da corrupção permitirá que se solucionem os problemas que mantêm o Brasil amarrado às desigualdades regionais e sociais, à falta de emprego, de saúde, de educação, de saneamento e de futuro. Uma tese que nada tem a ver com moralismos.
Moralismo, denuncismo, udenismo, no sentido mais pejorativo destas e de palavras equivalentes, é a qualificação frequentemente aplicada aos que se dispõem, em variados graus e modos, a se opor à corrupção, façam-no como procuradores da República ou estaduais, no Judiciário, no jornalismo e, muito ocasionalmente, na administração pública.
Em geral, não é difícil identificar motivos pessoais, passados ou presentes, nos que preferem -ou precisam- que à corrupção só se oponham aparências de inaceitação. A tal ponto vai essa hipocrisia, que o melhor enfoque para uma história da imprensa do último meio século, no Brasil, a meu ver é o do confronto entre corrupção e anti-corrupção no jornalismo e em numerosas empresas do ramo. Dessa contraposição têm decorrido até os avanços e os retardos técnicos do jornalismo por aqui.
Tal é o panorama brasileiro, considerando-se a corrupção a partir de ótica moral, ética, política ou, para quem precise de outras palavras, ótica moralista, denuncista ou lá o que interesse. É indissociável de todos esses aspectos, porém, a sua implicação social em países carcomidos pela pobreza paralela à insuficiência de recursos governamentais. Caso em que o Brasil é multicampeão mundial.
No ano passado, um estudo econômico estimou em R$ 6 bilhões a quantidade de dinheiro público desviado pela corrupção, a cada ano. Se convincente tal estimativa, já seria um montante monstruoso. Não convence, porém. Condena-se por otimismo em relação ao que se passa, de fato, na administração pública. Nos níveis federal, estadual e municipal.
Cada ato administrativo corrupto inclui dois desvios de dinheiro: o superfaturamento e a comissão para os que o permitem, na administração pública. Pode-se crer que haja contratos e compras corretos, pode-se até admitir, em inflação de fé, que sejam em número apreciável. Mas os controlados pela corrupção são ferozes. Na média entre transações corretas e fraudulentas, bastaria que superfaturamento e comissões ficassem nos tradicionais 10%, para que aqueles R$ 6 bilhões já subissem umas dez vezes. Por ano. Só na administração federal.
A média geral de 10% nas despesas, excetuados os gastos com funcionalismo, será considerada insignificante por muitos que têm idéia, indireta embora, do que costumam ser, por dentro, os nossos governos. Para os demais, que talvez considerassem a média de 10% excessiva, lembre-se que o preço pago para cada quilômetro de estrada, no Brasil, daria para pagar pelo menos dois quilômetros, e quase sempre mais que isso. Ou seja, o preço é superfaturado em pelo menos 100%, como a Folha deixa demonstrado com a vasta série de fraudes desmascaradas em concorrências públicas e em compras e contratos diversos.
Entre administrações estaduais e municipais menos corrompidas e as outras, a média de desvio de dinheiro público não há de ficar distante do que se passa no plano federal. Na melhor hipótese. Logo, a massa de dinheiro público transferida pela corrupção para bolsos privados e cofres empresariais, a cada ano, só é estimável na casa de centena de bilhões. Centenas, no plural.
Não falta dinheiro, no Brasil, para os governos atacarem todos os problemas e em poucos anos os resolverem. O dinheiro é entregue aos governos como pagamento de impostos e grande parte dele é furtada para os bolsos privados da corrupção. E os grandes furtados são os assalariados, os aposentados, os que menos têm: os maiores pagadores de impostos no Brasil, os únicos que, mesmo se o desejassem, não teriam como sonegá-los.
O dinheiro para solução dos problemas existe, mas é furtado nas obras, em terceirizações, compras, contratos, em financiamentos privilegiados, em subsídios injustificáveis, no acobertamento das muitas formas de sonegação e tanto mais. É o oceano de dinheiro da corrupção movimentado entre quem se beneficia e quem facilita.
Por isso, de minha parte entendo que se opor frontal e rigidamente à corrupção é, em termos pessoais, questão de princípios e, em termos mais amplos, questão de justiça social. Poderia acrescentar que penso o jornalismo como função de responsabilidade social, mas nem é necessário, nem a responsabilidade social se restringe ao jornalismo.
A permanência das desigualdades regionais e pessoais, a falta de saúde, educação, emprego e suas consequências -a favelização, a violência urbana, a péssima qualidade de vida nos centros urbanos- são frutos da corrupção. São a obra dos corruptos -os pagadores, os recebedores e os seus protetores.


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