São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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NO PLANALTO

Ideologia do Incra dá de ombros para a morte

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Fazenda Lagoinhas, município de Planaltina (GO). Passava de 22h. De um lado estavam os integrantes da família Amaral, dona da terra. De outro, lavradores sem terra. Entre eles, 30 metros de breu. Penumbra que injetava eletricidade à atmosfera.
Súbito, ouviram-se tiros. Deu-se a tragédia. Uma bala calibre 38 perfurou a cabeça de Luiz Carlos Becker Amaral. Levado ao hospital, morreu antes que a destreza dos médicos pudesse ser testada. Aconteceu em 2 de dezembro de 2003.
Na véspera, cerca de 40 lavradores sem terra haviam invadido a Lagoinhas. A chegada da polícia, na madrugada de 2 para 3 de dezembro, evidenciava que a coisa desandara. José Ailton da Silva, um dos líderes do grupamento de sem-terra, saiu de fininho. Refugiou-se nos arredores de Brasília.
Chamam-no Zé Barriga. Foi apontado em inquérito policial como autor do tiro fatal. Companheiros de invasão reconheceram que ele fez dois disparos. Teria usado, porém, uma arma artesanal, incompatível com a bitola da bala que trespassou o crânio de Becker Amaral.
Decretou-se a prisão de Zé Barriga. Caçado, não foi encontrado. Entregou-se em 9 de dezembro. Interrogado, disse que "sabe pegar em armas". Com as curtas, "não sabe atirar bem". Com as longas, "sabe atirar mais ou menos".
Já possuiu um revólver 38. Mas no conflito da Lagoinhas teria operado espingarda que chamou de "bate-bucha". É alimentada com pólvora, socada cano abaixo com uma vareta e detonada por espoletas. Alegou ter puxado o gatilho em resposta ao fogo inimigo. Negou que houvesse alvejado Becker Amaral.
Instado a entregar a arma, Zé Barriga disse que a abandonara na fazenda, ao lado de uma bolsa preta, no pé de uma árvore. Indicou o local aos policiais. Encontrou-se apenas a árvore, um pequizeiro. Nem sinal da arma.
Em batida no local em que se encontrava Vilma Rodrigues, mulher de Zé Barriga, a polícia recolheu a bolsa preta. Guardava um carregador de celular, pólvora, espoletas e fogos de artifício. Nada da arma.
Vilma declarou: a) recolheu a bolsa a pedido do marido; b) dois de seus filhos estavam com Zé Barriga "na hora que ele atirou"; c) não foi capaz de nominar os filhos nem de precisar o horário dos disparos;
Em 9 de fevereiro, a promotora Maria Aparecida Amorim denunciou Zé Barriga. Sustenta que, "mirando a vítima [...], efetuou-lhe um disparo, causa de sua morte".
Ainda preso, o sem-terra conta com o apoio do Incra. Um suporte expresso em correspondências anexadas ao processo.
Em 11 de dezembro de 2003, quando o corpo de Luiz Carlos Becker Amaral ainda se acomodava à cova, a Ouvidoria Agrária do Incra endereçou carta à polícia de Goiás. Pediu "a realização de perícia para constatar o tipo de arma que provocou a morte". Sob pena de "nulidade" do processo.
Na carta, assinada pelo ouvidor agrário Gercino José da Silva Filho, o Incra aceita como verdadeira a versão de que Zé Barriga manuseou arma artesanal. O que "gera dúvida quanto à autoria do crime".
Em 5 de janeiro, a Ouvidoria do Incra endereçou carta a Alcides Moacir Dumoncel Amaral. É proprietário da Lagoinhas, tio do assassinado. Assina a correspondência Maria de Oliveira, braço direito do ouvidor Gercino Filho.
Maria agiu a pedido da direção da Associação Bibolândia. É uma dissidência do MST. Reúne os sem-terra que invadiram a Lagoinhas. Os lavradores diziam-se perseguidos pelo dono da fazenda. Na carta, a Ouvidoria Agrária lembra ao fazendeiro as suas obrigações. Entre elas o "aproveitamento racional e adequado" da terra.
O texto traz nas entrelinhas a ameaça de desapropriação. O curioso é que os arquivos do Incra guardam laudo técnico que atesta: a) a Lagoinhas "apresenta grau de utilização e eficiência [...] em patamar próximo dos limites legais [...]"; b) "56,81% das terras não têm aptidão para o desenvolvimento da agricultura familiar". O documento desaconselha vivamente a desapropriação.
No mesmo dia em que escreveu ao fazendeiro, Maria de Oliveira enviou novo ofício à polícia goiana. Reitera o pedido de "perícia para constatar o tipo de arma que causou a morte" de Becker Amaral. Como se a arma do crime estivesse disponível.
O repórter tentou dar ouvidos à Ouvidoria do Incra. Discou para Gercino Filho. Não obteve resposta. Sua atribuição legal é a mediação de conflitos. Deveria zelar pelos interesses sociais dos sem-terra e também pelos direitos dos proprietários rurais.
O cabeçalho dos ofícios do Incra traz a logomarca da gestão Lula: "Brasil, um país de todos". Supostamente abrigada sob o guarda-chuva do vocábulo "todos", a família Amaral não recebeu de Brasília nem mesmo manifestação de condolências.
A pedido da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Zé Barriga é defendido pela Defensoria Pública da União, órgão do Ministério da Justiça. Argumenta-se que não há provas cabais da autoria do assassinato. Nos próximos dias, será feita a reconstituição do crime.
Josafá Alves Cordeiro, amigo de Zé Barriga, vice-presidente da Associação Bibolândia e organizador da invasão à Fazenda Lagoinhas, antecipa o resultado: "Vai ficar demonstrado que eles [os integrantes da família Amaral] atiraram neles mesmos".


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