São Paulo, domingo, 4 de maio de 1997.

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O que é isso, companheiro? O operário se deu mal

Depois de contemplar uma daquelas maravilhosas mulheres que só Matisse conseguiu pintar, uma senhora lhe disse:
- Essa mulher tem uma perna mais curta que a outra.
- Isso aí não é uma mulher. É um quadro -respondeu Matisse.
"O Que É Isso, Companheiro?" não é a narrativa do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, é um filme. Isso permitiu aos seus autores a manipulação de fatos e personagens num trabalho que denominaram de ``síntese'', quando seria mais apropriado chamar de fabulação. Uma grande e emocionante fabulação, capaz de entediar o espectador nos primeiros 15 minutos e de levá-lo às lágrimas na bela cena final.
Como se trata de um filme assumidamente relacionado com fatos reais, vale a pena, em benefício do conhecimento da história, enumerar algumas diferenças entre o que se vê e o que aconteceu.
Três diferenças estão relacionadas com a participação de Paulo (o ator Pedro Cardoso no filme), o atual deputado Fernando Gabeira da vida real.
Não foi de Gabeira a idéia de sequestrar o embaixador. Foi de Waldyr, dirigente da Dissidência Estudantil do Rio de Janeiro. Waldyr era o codinome de Franklin Martins, atual diretor da sucursal de "O Globo" em Brasília. Essa informação é do conhecimento público há pelo menos 17 anos.
Não foi Gabeira quem escreveu o manifesto dos sequestradores. Novamente, foi Franklin Martins.
Não foi Gabeira quem teve o embaixador sob a mira de um revólver, pronto para executá-lo.
Aliás, ninguém teve Elbrick na mira. É fabulação todo o segmento do filme que narra a possível execução do embaixador caso o governo estourasse o prazo dado pelos sequestradores. A junta patética que governava o país aceitou as condições nas últimas horas da noite do próprio dia do sequestro (4 de setembro de 1969). Essa informação foi divulgada na manhã do dia seguinte. Quem forçou a posição do governo foi o chanceler Magalhães Pinto, que naquelas horas teve como principal interlocutor o seu chefe de gabinete, embaixador Ítalo Zappa. (Os dois estavam almoçando quando o ministro-conselheiro da embaixada norte-americana William Belton telefonou ao Itamaraty avisando, em mau português, que tinham ``roubado'' o embaixador. A palavra sequestro ainda não fazia parte do cotidiano do poder.)
Essas três fabulações foram convenientes para a construção do personagem de Paulo. Transferidas para a biografia de Gabeira, nela continuarão a misturar realidade e fábula, mas como a biografia é dele, pode fazer com ela o que bem entender.
Também é fabulação o descontrole intestinal de Elbrick, mas isso tem tanta importância quanto o fato de que nem o embaixador norte-americano nem a rainha da Inglaterra seriam capazes de conseguir um táxi no portão principal do Maracanã num fim de Flamengo e Vasco.
A camionete do Centro de Informações da Marinha que perseguiu os sequestradores na hora da libertação não foi interceptada e dissuadida por um veículo com militares armados. Sua tripulação amarelou ao ver o cano da metralhadora de um dos sequestradores.
Clara, a sequestradora vivida por Claudia Abreu, não passou a noite com o chefe da vigilância da casa do embaixador (Milton Gonçalves). Era Marta, codinome de Vera Silvia Magalhães, uma linda morena de traços finos. Ela conseguiu preciosas informações sobre os hábitos do embaixador à custa de seu talento e inteligência. Sempre de pé. Vera foi presa em março de 1970. Levou um tiro superficial na cabeça e uma das sessões de pau-de-arara a que foi submetida durou sete horas. Seu tamanho na vida real foi tão grande que o filme precisou transbordá-la na ``companheira Maria'', vivida por Fernanda Torres. Foi Vera quem embarcou para a Argélia numa cadeira de rodas, ao fim de um novo sequestro. Vera Silvia é hoje uma planejadora urbana.
Jonas, o comandante militar da operação, chamava-se Virgílio Gomes da Silva. Tinha 36 anos, fora operário têxtil, militara no Partido Comunista e passara alguns meses em Cuba treinando guerrilha. Nada tem a ver com o personagem primitivo do filme. Era um homem determinado e valente, não um boçal capaz de ameaçar os colegas de morte. Quando os sequestradores temeram que a casa fosse invadida, não havia dúvida de que ele seria capaz de matar Elbrick. Foi capturado 20 dias depois em São Paulo. Na última cena da vida real em que foi visto vivo estava na central de torturas do Exército, com as mãos algemadas para trás, cuspindo e chutando seus algozes. Quando o tiraram da sala de espancamentos, batiam com sua cabeça no chão. Supõe-se que já estivesse morto.
A ditadura e os oficiais que comandaram seu assassinato informaram que ele fugiu da prisão. Assim, Virgílio Gomes da Silva foi o primeiro brasileiro a ``desaparecer'' depois de capturado. Um ano depois de morto, foi condenado a 30 anos de prisão. Nem Virgílio era um bugre, nem a tortura se resumia a afogamentos e pau-de-arara. Havia também choques elétricos, abusos sexuais e pancada, muita pancada. Foram poucos os torturadores que revelaram dramas existenciais. Também foram poucos os generais, almirantes e brigadeiros que revelaram dramas de consciência por terem ordenado e acobertado as torturas praticadas por tenentes, capitães e majores. (Devolvido o poder aos civis, essa inconsciência mudou de roupa e parou-se de torturar no andar de cima. Diadema e Cidade de Deus estão aí para não deixar ninguém mentir. Naquela época, o advogado Marcello Alencar defendia presos políticos. Hoje diz que entre os surrados de Cidade de Deus ``não há nenhuma Virgem Maria''.)
Há algo de estranho no papel que coube a Virgílio Gomes da Silva na memorialística do período. Como livro de memórias é coisa de intelectual, o operário acabou se tornando um estorvo. Virou um personagem ora secundário, ora embrutecido. Uma espécie de tipo excessivamente popular para caber num cenário habitado (e narrado) por gente fina.
Mais estranho é que esse desconforto tenha se repetido anos depois, quando se teve de achar um lugar na história para um metalúrgico paulista chamado Manuel Fiel Filho, assassinado em 1976, em São Paulo. De sua morte resultou a demissão do comandante do 2º Exército e a partir dela o presidente Ernesto Geisel encurralou os torturadores que desafiavam sua autoridade. Não só a morte de Fiel é pouco lembrada, como sua viúva não conseguiu receber integralmente a indenização que conquistou na Justiça em 1980. Ela continua na fila dos precatórios.

Projeto Camelô
Em pelo menos três ocasiões FFHH ensinou aos nativos que uma coisa é o desemprego industrial e bem outra é o desemprego como fenômeno social. Na mais clara delas, falando no Colégio de México, no ano passado, informou:
- Muitos consideram que essa migração do emprego do setor manufatureiro para o de serviços é um fenômeno negativo. Conceitualmente, contudo, isto é um equívoco: é errônea a percepção de que somente a indústria pode prover empregos de qualidade.
O número de abril do boletim informativo ``Visor'', publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Economica Aplicada), informa o seguinte:
Entre 1985 e 1995, o comércio ambulante foi a atividade do setor de serviços que mais cresceu em termos de ocupação no país. Em dez anos a percentagem de ambulantes passou de 15,7% para 21,2% dos ocupados no comércio.
Estatísticas do Ministério do Trabalho acrescentam que em 1996 foram criados 14 mil empregos de vigilantes na Grande São Paulo. Depois do setor dos trabalhadores braçais, esse foi o que mais cresceu.
Está certo que se mutile o parque industrial brasileiro supondo-se que no seu lugar surjam novas fábricas e um setor de serviços informatizado. Resta saber quem pagará a conta quando se descobrir que na prática produziram-se camelôs oferecendo balas a guarda-costas.

De mão em mão, o estaleiro foi para o PC do B
O doutor Joel Rennó está produzindo a PetroCaos. Durante mais de um ano manteve contratos que valem perto de US$ 500 milhões nas mãos do estaleiro Verolme Ishibrás, IVI. Ao longo desse tempo foi sucessivamente advertido de que a empresa não conseguiria entregar as obras contratadas pelo preço estipulado. Foi também informado de que a IVI não honrara diversas dívidas trabalhistas. Preferiu empurrar o caso com a barriga e na semana passada se chegou um desfecho teatral.
O empresário German Eframovich, da Marítima, arrendou o estaleiro por oito anos a R$ 180 mil ao mês. Conseguiu isso não dos donos, com quem negociou por mais de quatro meses, mas do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, controlado pelo PC do B.
Depois de uma sucessão de liminares e decisões judiciais, uma dívida trabalhista do estaleiro (quitada) serviu de base para a entrega do usufruto da IVI ao sindicato. A empresa está mal das pernas tem mais de 1.000 títulos protestados e algo como 50 pedidos de falência que vêm sendo negociados nos tribunais. Caloteou dezenas de trabalhadores desempregados.
Coisa de louco. O contrato de arrendamento foi assinado pelo administrador judicial menos de três horas depois de ter posto o pé num estaleiro pela primeira vez. O Sindicato dos Metalurgicos de Angra dos Reis, onde está a maioria dos empregados da empresa, discorda do arrendamento. Seu presidente foi proibido de entrar no estaleiro. Outros 30 trabalhadores, quase todos chefes de seção, também foram banidos. O juiz que deu o usufruto teve a falta de sorte de ver, há poucas semanas, um assessor seu vendendo uma liminar ao cantor Tim Maia.
Por não querer jogar bruto com a IVI quando o problema surgiu, a PetroCaos do doutor Rennó, conseguiu criar uma situação inédita. Transferiu-se o controle de uma empresa burguesa para outra, igualmente burguesa, com a ajuda de uma diretoria de sindicato do proletariado.
Com um processo de transprivatização que durou apenas três horas, bem que FFHH podia entregar a presidência do BNDES ao PC do B. Ele conseguiria comprador para a Vale do Rio Doce em menos de três dias.

Frases: Tony Blair
(44 anos, primeiro-ministro inglês.)
- Controlar a inflação não é apenas um objetivo em si mesmo. É um pré-requisito essencial para um desenvolvimento econômico sustentado.
- Um dos maiores erros dos partidos do centro à esquerda tem sido tentar dividir a sociedade em segmentos, formular uma política para cada pedaço, botar tudo numa panela e acreditar que dessa soma resulta uma maioria. A vida funciona de outro jeito.
- A educação é um serviço público destinado a melhorar a qualidade das oportunidades para cada um de nós. Não pode ser entregue ao mercado. Assim como não se podem entregar ao mercado nossos serviços de saúde, nossas forças armadas, nossa polícia. Nem nossas ferrovias ou nosso correio. São serviços públicos. Devem ser geridos para o público e devem continuar como propriedade do povo.
- Vamos tomar os lucros exagerados dos novos barões ladrões das privatizações e usá-los no programa mais radical que já se viu neste país na área de educação.
- É importante controlar custos, mas a anorexia empresarial não produz saúde econômica.

Lula no Planalto
É quase certo que Luiz Inácio Lula da Silva subirá a rampa do Planalto para atender ao convite formal e público que FFHH lhe fez. Nada a ver com outro, informal e reservado que teve como intermediário o governador de Brasília, Cristovam Buarque. Na manobra anterior, nem o Planalto nem o portador o revelaram, deixando o assunto correr por trás da cortina.
Para evitar choques de versões, é provável que Lula divulgue a agenda de sua conversa, bem como as recomendações e queixas que fará. Deixará ao presidente a tarefa de divulgar as respostas.

Feitiço maligno
O que mais incomodou o tucanato no adiamento da privatização da Vale foi o fato dele ter permitido a rearticulação do consórcio que gira em torno do grupo Vicunha.
Há pouco mais de um mês o aparecimento desse consórcio foi um alívio, porque eliminaria a impressão de que o leilão acabaria inevitavelmente com a vitória do empresário Antonio Ermírio de Moraes.
Era importante que houvesse competição, desde que o grupo Vicunha perdesse. Ganhando, seria um pesadelo.

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