São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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NO PLANALTO

Dirceu, o leão, o cachorro e o assalto aos céus

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Cada crise tem uma fatalidade própria. A excentricidade da crise atual é a corrupção acéfala, a máfia sem capo. Onde estão os chefes? Eis a pergunta que os brasileiros começam a se fazer uns aos outros, sem obter resposta. O pseudopresidente Lula, como se sabe, reivindica o papel de cego atoleimado. E José Dirceu está como o animal de uma célebre anedota da década de 60.
É a piada do português que se tornou o principal credor de um circo. O circo faliu. Com o portuga em seu encalço, o dono ficou sem alternativa: "Não tenho dinheiro, mas pode levar o leão". Decidido a passar o bicho nos cobres, o luso enxergou na juba do animal um traço do desleixo dos tratadores. Antes de vendê-lo, achou que deveria melhorar-lhe a aparência. Passou a máquina zero na cabeleira do leão que, sem juba, virou um cachorro amarelo.
No esforço que empreende para provar-se coadjuvante de um enredo de perversões, José Dirceu como que aplaina a própria juba. Lançando mão dos melhores estratagemas para atingir os piores subterfúgios, o ex-chefão da Casa Civil nega um passado do qual costumava jactar-se. De atração principal do circo, converte-se num insignificante cachorro amarelo. No tempo em que Brasília ainda tentava fazer sentido, os valores pareciam mais nítidos. Deus era Deus, o diabo era diabo, o PT era PT, o Delúbio era pau-mandado, o Lula era presidente e o Dirceu era primeiro-ministro. Hoje, a nitidez perdeu a função. Nada é o que parece. Dirceu, por exemplo, virou o antilíder, uma espécie de sub-Delúbio.
O novo Dirceu, trêmulo de humildade, guarda uma abissal dessemelhança com o Dirceu eternizado nas páginas de um livro de cunho autobiográfico. Chama-se "Abaixo a Ditadura" (Ed. Garamond, 1998). Foi escrito, em parceria com Vladimir Palmeira, por um Dirceu que Nelson Rodrigues chamaria de legítimo, de escocês.
O Dirceu do livro vendia-se como um protagonista nato, um líder desde a primeira mamada. Nasceu em 16 de março de 46 já com o ego empinado. Colecionou façanhas que bem poderiam tê-lo guindado à condição de estátua. Nada a ver com o Dirceu atual, que, pardal de si mesmo, suja com desenvoltura dialética a própria testa de bronze. É como se o líder vivo, autoconvertido em pobre-diabo, desejasse provar que morreu. Pior: é como se quisesse demonstrar que nunca existiu. Esse novo Dirceu não faz jus nem à memória do menino de alma turbulenta de Passa Quatro (MG). No tempo em que seu horizonte humano não passava de meia dúzia de casas vizinhas, Dirceu percorria, descalço, as ruas da infância profunda à procura de encrenca.
Integrava uma "pequena gangue de garotos". Divertia-se amarrando barbante em rabo de cachorro e assaltando frutas em quintais alheios. A "gangue", conta o Dirceu do livro, se comunicava por meio de um assobio que se tornou "o terror da cidade". Dirceu era, entre todos os garotos, "o pior". "Quando se falava de um menino insuportável, desses que ninguém agüenta na escola, diziam: "Esse aí parece o Zé Dirceu". Quando saí da cidade, as professoras e as mães soltaram fogos, se alegraram: "Estamos livres do Zé Dirceu"."
Despachado por Lula do Ministério da Educação para pôr ordem no mafuá petista, Tarso Genro sonhou para si um futuro de professorinha de Passa Quatro. Tramou a exclusão de Dirceu da chapa que disputa a direção do "novo" PT. Logo se deu conta de que não se livraria facilmente de Dirceu. A soberba do leão ainda se remexe nas entranhas do cachorro amarelo.
Muitos espíritos ingênuos imaginaram que o Dirceu pulguento seria solidário à renovação que condiciona o futuro do ex-PT e do governo. A humildade falsificada, porém, tem solidariedades mais urgentes. Se Dirceu acreditasse em Deus e fosse intimado pelo Todo Poderoso a optar entre a salvação do PT e do governo e a preservação do seu mandato proclamaria sem hesitar: "Morra o PT. Apodreça o governo".
É na refrega subterrânea do poder que o leão genuíno desafia o cachorro simulado. Ali, o Dirceu pré-UNE ressurge nas cinzas do líder estudantil que já se insinuava na ação do fundador da "Turma da Canalha", um grupo de estudantes que, dedicado à subversão das regras de uma conservadora PUC de São Paulo, ateava paixões instantâneas nos corações femininos.
Ouça-se o longínquo Dirceu do livro: "(...) Derrubamos essa história de precisar nos levantar quando o professor entrava na sala (...). Nessa época eu havia deixado o cabelo crescer e, como ninguém usava cabelo comprido, acabei virando um personagem. Foi um escândalo".
Dirceu agora é mais testa do que fios de cabelo. Enredou-se em escândalos menos pueris. Seu olhar já não vaza luz. As meninas já não lambem a sua cútis com os olhos. Seus ombros não carregam mais o futuro do mundo. Esforça-se para tirar das costas o peso do arcaísmo que conspurcou os ideais de um passado remoto.
Escute-se de novo o Dirceu das páginas de "A Luta Contra a Ditadura": "É difícil reproduzir o que foi o espírito de 68, mas posso dizer que havia uma poderosa força simbólica impulsionando a juventude (...). O mundo parecia estar explodindo. Na política, no comportamento, nas artes, na maneira de viver e de encarar a vida, tudo precisava ser virado pelo avesso. Para nós, o movimento estudantil era um verdadeiro assalto aos céus".
É pena que, ao despencar dos céus do Planalto, Dirceu tenha agora de sustentar a tese de que não viu o assalto que virou o sonho pelo avesso. O convívio com a luta armada não desenvolveu em Dirceu a dimensão da morte. Daí o fracasso da tentativa de mostrar-se como figurante em meio ao caos.
Quem observa Dirceu pelo perfil esquerdo enxerga um inocente culpado. Quem o espreita pelo pelo ângulo direito vê um culpado inocente. Quem o examina de frente, avista o semblante de um chefe escondido atrás da crise. Daquele Dirceu habituado a clandestinidades mais honrosas esperava-se outro tipo de atitude. Deste Dirceu protegido pelo manto diáfano da empulhação não se espera senão o epílogo de Silvério de Delúbios que desonra a sua biografia.

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