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NO PLANALTO
Dirceu, o leão, o cachorro e o assalto aos céus
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Cada crise tem uma fatalidade própria. A excentricidade da crise atual é a corrupção
acéfala, a máfia sem capo. Onde
estão os chefes? Eis a pergunta que
os brasileiros começam a se fazer
uns aos outros, sem obter resposta. O pseudopresidente Lula, como se sabe, reivindica o papel de
cego atoleimado. E José Dirceu está como o animal de uma célebre
anedota da década de 60.
É a piada do português que se
tornou o principal credor de um
circo. O circo faliu. Com o portuga
em seu encalço, o dono ficou sem
alternativa: "Não tenho dinheiro,
mas pode levar o leão". Decidido
a passar o bicho nos cobres, o luso
enxergou na juba do animal um
traço do desleixo dos tratadores.
Antes de vendê-lo, achou que deveria melhorar-lhe a aparência.
Passou a máquina zero na cabeleira do leão que, sem juba, virou
um cachorro amarelo.
No esforço que empreende para
provar-se coadjuvante de um
enredo de perversões, José Dirceu
como que aplaina a própria juba.
Lançando mão dos melhores estratagemas para atingir os piores
subterfúgios, o ex-chefão da Casa
Civil nega um passado do qual
costumava jactar-se. De atração
principal do circo, converte-se
num insignificante cachorro
amarelo. No tempo em que Brasília ainda tentava fazer sentido, os
valores pareciam mais nítidos.
Deus era Deus, o diabo era diabo,
o PT era PT, o Delúbio era pau-mandado, o Lula era presidente e
o Dirceu era primeiro-ministro.
Hoje, a nitidez perdeu a função.
Nada é o que parece. Dirceu, por
exemplo, virou o antilíder, uma
espécie de sub-Delúbio.
O novo Dirceu, trêmulo de humildade, guarda uma abissal dessemelhança com o Dirceu eternizado nas páginas de um livro de
cunho autobiográfico. Chama-se
"Abaixo a Ditadura" (Ed. Garamond, 1998). Foi escrito, em parceria com Vladimir Palmeira, por
um Dirceu que Nelson Rodrigues
chamaria de legítimo, de escocês.
O Dirceu do livro vendia-se como um protagonista nato, um líder desde a primeira mamada.
Nasceu em 16 de março de 46 já
com o ego empinado. Colecionou
façanhas que bem poderiam tê-lo
guindado à condição de estátua.
Nada a ver com o Dirceu atual,
que, pardal de si mesmo, suja com
desenvoltura dialética a própria
testa de bronze. É como se o líder
vivo, autoconvertido em pobre-diabo, desejasse provar que morreu. Pior: é como se quisesse demonstrar que nunca existiu. Esse
novo Dirceu não faz jus nem à
memória do menino de alma turbulenta de Passa Quatro (MG).
No tempo em que seu horizonte
humano não passava de meia dúzia de casas vizinhas, Dirceu percorria, descalço, as ruas da infância profunda à procura de encrenca.
Integrava uma "pequena gangue de garotos". Divertia-se
amarrando barbante em rabo de
cachorro e assaltando frutas em
quintais alheios. A "gangue", conta o Dirceu do livro, se comunicava por meio de um assobio que se
tornou "o terror da cidade". Dirceu era, entre todos os garotos, "o
pior". "Quando se falava de um
menino insuportável, desses que
ninguém agüenta na escola, diziam: "Esse aí parece o Zé Dirceu".
Quando saí da cidade, as professoras e as mães soltaram fogos, se
alegraram: "Estamos livres do Zé
Dirceu"."
Despachado por Lula do Ministério da Educação para pôr ordem no mafuá petista, Tarso Genro sonhou para si um futuro de
professorinha de Passa Quatro.
Tramou a exclusão de Dirceu da
chapa que disputa a direção do
"novo" PT. Logo se deu conta de
que não se livraria facilmente de
Dirceu. A soberba do leão ainda
se remexe nas entranhas do cachorro amarelo.
Muitos espíritos ingênuos imaginaram que o Dirceu pulguento
seria solidário à renovação que
condiciona o futuro do ex-PT e do
governo. A humildade falsificada,
porém, tem solidariedades mais
urgentes. Se Dirceu acreditasse
em Deus e fosse intimado pelo Todo Poderoso a optar entre a salvação do PT e do governo e a preservação do seu mandato proclamaria sem hesitar: "Morra o PT.
Apodreça o governo".
É na refrega subterrânea do poder que o leão genuíno desafia o
cachorro simulado. Ali, o Dirceu
pré-UNE ressurge nas cinzas do líder estudantil que já se insinuava
na ação do fundador da "Turma
da Canalha", um grupo de estudantes que, dedicado à subversão
das regras de uma conservadora
PUC de São Paulo, ateava paixões
instantâneas nos corações femininos.
Ouça-se o longínquo Dirceu do
livro: "(...) Derrubamos essa história de precisar nos levantar quando o professor entrava na sala (...).
Nessa época eu havia deixado o
cabelo crescer e, como ninguém
usava cabelo comprido, acabei virando um personagem. Foi um escândalo".
Dirceu agora é mais testa do que
fios de cabelo. Enredou-se em escândalos menos pueris. Seu olhar
já não vaza luz. As meninas já
não lambem a sua cútis com os
olhos. Seus ombros não carregam
mais o futuro do mundo. Esforça-se para tirar das costas o peso do
arcaísmo que conspurcou os
ideais de um passado remoto.
Escute-se de novo o Dirceu das
páginas de "A Luta Contra a Ditadura": "É difícil reproduzir o
que foi o espírito de 68, mas posso
dizer que havia uma poderosa
força simbólica impulsionando a
juventude (...). O mundo parecia
estar explodindo. Na política, no
comportamento, nas artes, na
maneira de viver e de encarar a
vida, tudo precisava ser virado pelo avesso. Para nós, o movimento
estudantil era um verdadeiro assalto aos céus".
É pena que, ao despencar dos
céus do Planalto, Dirceu tenha
agora de sustentar a tese de que
não viu o assalto que virou o sonho pelo avesso. O convívio com a
luta armada não desenvolveu em
Dirceu a dimensão da morte. Daí
o fracasso da tentativa de mostrar-se como figurante em meio
ao caos.
Quem observa Dirceu pelo perfil
esquerdo enxerga um inocente
culpado. Quem o espreita pelo pelo ângulo direito vê um culpado
inocente. Quem o examina de
frente, avista o semblante de um
chefe escondido atrás da crise. Daquele Dirceu habituado a clandestinidades mais honrosas esperava-se outro tipo de atitude. Deste Dirceu protegido pelo manto
diáfano da empulhação não se espera senão o epílogo de Silvério de
Delúbios que desonra a sua biografia.
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