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ANÁLISE
Canudos e os novos territórios lulistas
MARCO ANTONIO VILLA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Canudos resiste. A pequena
cidade fundada por Antonio
Conselheiro no nordeste da Bahia em 1893 e destruída quatro
anos depois continua abandonada pelo poder público. Reconstruída no início do século
20, após o retorno de parte da
população conselheirista, a cidade manteve-se isolada até a
visita de Getúlio Vargas, em outubro de 1940, e a decisão governamental de construir um
açude, obras que terminaram
em 1969, obrigando a população a se transferir para o povoado de Cocorobó. Hoje o município tem uma ampla área territorial (2.985 quilômetros quadrados) e uma população de
13.760 pessoas. É paradigmático para tentarmos entender os
resultados da eleição presidencial e a grande vitória obtida
por Luiz Inácio Lula da Silva na
região Nordeste.
A Bahia tem um dos piores
Índices de Desenvolvimento
Humano (IDH): está em 22º lugar, entre os 27 Estados. A cidade melhor classificada é a capital, Salvador: ocupa o 475º lugar entre os municípios brasileiros. A região de Canudos é a
mais pobre do Estado. Isolada
pelas péssimas estradas, sem
um eficaz sistema de telefonia
(celular não tem sinal na área) e
assolada pela seca (o índice pluviométrico do município é um
dos mais baixos do estado), os
canudenses sobrevivem no limite da pobreza. O poder público federal está ausente: há somente uma agência do Banco
do Brasil (e que funciona apenas das 9h às 12h).
O Produto Interno Bruto
(PIB) é de pouco mais de R$ 32
milhões. O número de pessoas
com registro na carteira profissional não chega a 200 (não há
condições para pagar o salário
mínimo e muito menos os encargos sociais). No município
não há nenhum trator e o principal meio de transporte são as
motos (quase 300).
A cidade depende do Fundo
de Participação dos Municípios
(recebe cerca de R$ 3,5 milhões), pois a receita de impostos é mínima: de IPTU foi arrecadado apenas R$ 8 mil. Há
dois hospitais, cada um controlado por um dos coronéis da cidade. Ambos atendem pelo
SUS. Em um ano ocorreram
13.563 internações, a média de
uma por habitante (segundo
dados do IBGE), apesar ter apenas 62 leitos, o que dá uma média de 218 internações por leito
(a cidade tem 13 médicos, parte
não reside no município).
Canudos vive de uma agricultura de baixíssima produtividade, uma pecuária baseada na
criação de bode e do pequeno
comércio. Apesar do açude de
Cocorobó, com capacidade para armazenar 245 milhões de
metros cúbicos de água, metade da cidade não recebe em
suas casas o precioso líquido.
Grande parte das águas estão
salinizadas e o pequeno distrito
irrigado (com a presença de 150
famílias) está em péssimas condições, com a canalização arruinada, fazendo com que a renda
média de cada família gire em
torno de um salário mínimo
mensal, segundo dados do pesquisador Luiz Paulo Neiva da
Universidade do Estado da Bahia.
Mesmo com a melhoria dos
índices de escolaridade, a maior
parte dos jovens não tem emprego fixo. Quando trabalham,
vivem de bicos. Não há indústria, atividade agrícola ou comercial que gerem empregos
em quantidade suficiente para
absorver a força de trabalho. O
lazer é inexistente, a gravidez
precoce ocorre em escala considerável e a única "diversão" são
os bares. Só na principal rua, a
avenida Juscelino Kubitschek,
em três quarteirões há uma dúzia de bares. O alcoolismo atinge parte da população, assim
como o consumo de drogas.
Foi nesta espécie de microcosmos do sertão nordestino
que Lula obteve uma folgada vitória no primeiro turno, com
68,4% dos votos, e no segundo
ampliou ainda mais a votação,
obtendo 78,06%. Alckmin conseguiu 27,3% no primeiro turno e caiu no segundo para
21,94%. Para o governo estadual, o candidato petista, Jaques Wagner, obteve a maioria
absoluta dos votos: 54,7%, em
grande parte produto da "onda
Lula".
As eleições romperam o domínio dos dois políticos que
apresam a cidade, um do PFL, o
atual prefeito (Vavá), e o outro
do PSDB, ex-prefeito (Zito),
que se alternam no poder desde
a emancipação do município,
em 1985. Na eleição presidencial tinham o mesmo candidato, Geraldo Alckmin, e foram
derrotados. Mas o que chama a
atenção é o número de eleitores
da cidade: 10.655, isto com uma
população de 13.760 pessoas,
muito acima da média nacional.
O que reforça a necessidade de
um recadastramento eleitoral,
principalmente se for correta a
informação do ministro Carlos
Veloso, ex-presidente do TSE,
de que no Brasil há 10 milhões
de títulos fantasmas (ver Folha
de S.Paulo de 16 de setembro de
2006).
É difícil encontrar alguém
que não seja beneficiado pelo
Bolsa Família. Se em maio
eram 1.673 famílias inscritas no
programa, em cinco meses, às
vésperas da eleição, este número saltou para 2.246: "Não temos emprego. Tenho três filhos. Meu marido só agora arranjou um trabalho. Preferia
estar trabalhando. Bolsa Família é bom mas preferia um emprego", diz Maria José Varjão,
29 anos, estudando o segundo
ano do ensino médio. Em 1998
votou em FHC, em 2002 em
José Serra, já em 2006 escolheu Lula. Participava dos programas sociais do governo anterior. Dos seis irmãos, três migraram, dois para São Paulo e
um para Salvador. Graças a um
deles construiu uma casa com o
dinheiro que manda mensalmente. Mora ao lado da casa da
mãe, aposentada, e que acabou
se transformando em arrimo
da família. "É o único dinheiro
garantido que tem lá em casa.
Meus outros dois irmãos não
tem trabalho fixo e quando
conseguem algo é provisório:
aqui ninguém é registrado", diz
ela.
A professora Maria Cláudia
Jesus da Silva, 26 anos, nasceu
em Canudos. É solteira. Tem
nove irmãos. Cinco migraram
para Juazeiro, Petrolina e Salvador. Migraram "porque aqui
não tem trabalho". O pai também recebe aposentadoria:
"Sem ela não sobrevivemos".
Uma tia está inscrita no Bolsa
Família: tem nove filhos. A professora discorda do programa.
Diz que "é um dinheiro fácil",
"não precisa suar", diz que muitos que recebem não trabalham
por vadiagem. Votou em FHC
em 1998, mudou para Lula em
2002 e neste ano votou novamente nele.
O padre Lívio, da Igreja Católica, um italiano que está há vários anos em Canudos, considera que o governo Lula pouco fez
pela região. Reclama que faltam
investimentos. A presença do
Estado manifesta-se através do
programa Bolsa Família. Tem
esperança de que algo pode melhorar. A ação da igreja é muito
importante organizando a população na construção de cisternas, apoiando programas de
saúde preventiva e no incentivo à agricultura familiar.
Na semana anterior ao segundo turno, no sábado à noite
teve até carreata. Com fogos.
Claro que pró-Lula. Ninguém
dizia que iria votar em Alckmin. E não é exagero. A imagem
que os canudenses têm do candidato opositor é de alguém
muito distante do cotidiano do
sertão. Muitos disseram nem
sequer entender o que ele fala,
outros que só o conheceram
agora, na eleição. Dizem que
Lula foi o único presidente
"que olhou para nós". Reconhecem que falta emprego, falam
da corrupção ("todo mundo
rouba, mas ninguém provou
que Lula é ladrão"), estabelecem identidade com a sua história ("Ele sabe o que é seca, o
que é sofrimento") e relacionam Alckmin com ACM.
O semi-árido nordestino virou um território lulista. Sem
estabelecer um diálogo político
com os milhões que sobrevivem na região, a oposição sofrerá outra grande derrota na próxima eleição. Como disse uma
canudense: "Sei que o Lula não
vai ser candidato em 2010. Votarei em quem ele mandar".
MARCO ANTONIO VILLA é professor de história no departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor de
"Jango, um Perfil" (Globo), entre outros livros.
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