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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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ELIO GASPARI

A Itamaraty descuidou-se do patrimônio. Dançou

No dia 22 de julho, fez-se uma descoberta no velho prédio do Itamaraty, no Rio de Janeiro: sua mapoteca, uma das jóias da cultura nacional, fora saqueada. Os ladrões roubaram perto de 150 mapas e pelo menos 500 fotografias. Numa avaliação grosseira, podem ter levado mais de US$ 2 milhões. Até aí, repetiu-se a velha história do descaso da burocracia com a cultura. O chanceler Celso Amorim é protegido por mais seguranças do que a mapoteca, onde não há vigilante nenhum. Qualquer portão de garagem tem câmeras de segurança. Na mapoteca, não se consertam maçanetas.
O caso desse saque vale pelo estilo dos ladrões. Entraram sem arrombar uma só porta. Cometeram alguns enganos, mas sabiam o que queriam e foram às gavetas certas. É provável que tenham feito mais de uma viagem. É certo que o saque foi descoberto por acaso.
O Itamaraty informa que, "por instrução da Polícia Federal", não contou o caso à patuléia. Calou-se mesmo depois de o roubo ter sido noticiado duas vezes pela imprensa. Na quinta-feira, informava que não tinha uma lista das peças roubadas. Desde a véspera, ela estava na internet. A prática internacional recomenda a imediata divulgação do roubo de bens culturais.
Melhor voltar aos ladrões e, possivelmente, à pessoa que ficou com a carga. Eles conheciam tão bem a mapoteca que a atacaram quando estava concluído um grande trabalho de conservação, patrocinado pela Fundação Gulbenkian. O novo guardião do acervo conhece tão bem o mercado de antiguidades que, na semana seguinte à descoberta do golpe, mandou ao Itamaraty um canudo do Sedex. Dentro estavam diversas peças -inclusive um mapa do Brasil- traçadas em 1631 por um grande cartógrafo português. O remetente se identificou como morador do lado ímpar da rua General Polidoro (é o cemitério São João Batista). Seu nome: João Teixeira (é o cartógrafo). No dia 25 de agosto, o diretor do Museu do Itamaraty recebeu em casa outra carga. Era um atlas com 19 mapas manuscritos, uma das peças mais valiosas do butim.
Há algo de Cary Grant nesse ladrão de casaca. Enquanto comemoram-se as devoluções, atribuindo-as às virtudes do sigilo, entende-se que ele só devolveu peças únicas -quase sempre famosas- porque tem carinho pelos mapas. Ele não é bobo e sabe que são difíceis de serem passados adiante. Remeteu-os a pessoas de mérito. Roubou fantásticos álbuns de fotografias, inclusive uma coleção de imagens do Rio de Marc Ferrez e 64 retratos de membros da realeza. Ficou com todos. Assim como ficou com os mapas gravados, dos quais há outros exemplares.
A mapoteca do Itamaraty foi saqueada quando podia ser apresentada como símbolo do desmanche da administração pública nacional. Esse patrimônio de 50 mil peças, enriquecido pelas coleções do barão do Rio Branco e de Joaquim Nabuco, ocupa um grande salão, três salas e 450 gavetões. Tinha um contínuo e uma chefe de serviço. Morreu o contínuo, ficou só a chefe. Há estagiários e profissionais terceirizados que trabalham quando há quem pague.
Um apelo ao estilo do ladrão: o senhor devolveu quase todos os mapas do atlas de João Teixeira, a peça mais valiosa do golpe. Guardou consigo uma só folha, a da foz do rio da Prata. Seu pessoal carregou dois volumes de um rico atlas holandês e deixou quatro outros para trás. Poderia devolver a carta do Prata e os dois volumes holandeses. Quem aprecia livros e mapas não quebra conjuntos.
 
É o seguinte o endereço da lista: http://www.iphan.gov.br/news/listadebensdamapoteca.htm

Microcaloteiro

Enquanto o presidente argentino, Néstor Kirchner, ameaça o mundo com macrocalotes, o doutor Antonio Palocci Filho criou a diplomacia do microcalote. Ao exemplo:
Em meados de agosto, Lula foi a Assunção para a posse do novo presidente do Paraguai. A infra-estrutura que o acompanha alugou 20 celulares, três computadores e uns dez automóveis. Despesa de US$ 5.019,70.
Passados 40 dias, os fornecedores não viram a cor do dinheiro e ameaçam ir à Justiça. Nas palavras do embaixador Luiz Augusto de Castro Neves ao Itamaraty: "Não posso deixar de transmitir a perplexidade (para usar um termo ameno) que se está gerando em meios locais (autoridades governamentais incluídas) diante da impossibilidade de o governo brasileiro honrar em tempo hábil as dívidas contraídas com a viagem de seu próprio presidente".
O último governante a passar por esse tipo de vexame foi Mikhail Gorbatchov, em 1991. A União Soviética agonizava em tamanha miséria que o então presidente americano, George Bush, ficou com o conta de hotel dos russos com quem se reunira em Madri.

Nosso Senhor do Planalto é espanhol

Uma boa notícia para quem tem quem tem fé: Jesus Cristo entrou no Planalto. No início de setembro, Lula entronizou uma imagem do Crucificado no lambris da pilastra que fica atrás da poltrona onde ele se senta quando recebe visitantes. É uma peça tem 1,1 m de altura, cinco séculos e uma bonita história.
Lula a recebeu de presente bastante maltratada. Sua cruz se perdera e a imagem não tomava um bom banho havia mais de 200 anos. O presidente se afeiçoou à peça e cuidou para que fosse restaurada.
O Crucificado foi para as mãos de Antônio Fernando Batista, do Iphan mineiro, co-autor do catálogo definitivo da obra de Aleijadinho. Em fevereiro, ele se valeu dos cuidados do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, da UFMG. Lá, as peritas Lucienne Elias e Alessandra Riosado trabalharam por três meses no Crucificado de Lula. Pelo tipo de bichos que o atacaram (brocas), viu-se que não era brasileiro. Pela madeira (tília) e pelo estilo, estabeleceu-se que ele deve ter sido esculpido no norte da Espanha, no final do século 16.
É uma obra cuidada. Os braços da imagem têm veias, feitas com a aplicação de barbante. As restauradoras recuperaram uma lágrima, gotas de sangue nas chagas e a cor original da peça. Elas mantiveram os dedos que haviam sido refeitos há mais de cem anos, mas não alteraram nada.
Lula talvez não soubesse, mas o Cristo sujo que lhe deram de presente vale uns bons US$ 30 mil no mercado internacional. É muito difícil que ele tenha saído de uma igreja brasileira e é certo que não está inventariado entre os bens que o Iphan tenta recuperar. De acordo com o que Lula contou ao cardeal José Freire Falcão, de Brasília, o Crucificado será doado à sua arquidiocese.
É a primeira vez que Jesus Cristo entra no gabinete presidencial. José Sarney já teve um são José; e Fernando Collor, uma Virgem Maria. Durante quase 20 anos, a imagem mais destacada do gabinete presidencial foi um retrato de dom Pedro 1º. Quando Lula chegou à sala, achou um quadro de Alfredo Volpi pendurado de forma errada. (As bandeirinhas estavam na horizontal. Quem conhece a cultura plástica dos tucanos paulistas e gosta de teorias de conspiração, tem todo direito de achar que se tratava de uma pegadinha.)
As relações do Crucificado com os presidentes brasileiros já passaram por momentos de tensão. Dois governantes (Getúlio Vargas e Ernesto Geisel) não acreditavam em divindades. Um, FFFHHHH, informou que acreditava e chegou a comungar. Teme-se que as divindades não acreditem nele.

Troca de pai

Abortou o processo pelo qual o falecido embaixador Walther (Unibanco) Moreira Salles seria reconhecido como pai de José Roberto Gomes Pacheco.
Os herdeiros do embaixador firmaram um acordo pelo qual Gomes Pacheco receberia R$ 100 milhões, desde que se submetesse a exames de DNA. Cada lado escolheu dois laboratórios, e os quatro laudos deram o mesmo resultado: José Roberto Gomes Pacheco não é filho de Walther Moreira Salles.

Drauzio de fora

Falhou uma manobra audaciosa do senador Jorge Bornhausen, presidente do PFL. Num jantar, no início de setembro, ele ofereceu ao médico Drauzio Varella a legenda do partido caso quisesse se candidatar a prefeito de São Paulo. Porteira fechada: faria o que quisesse, com quem quisesse.
O autor de "Carandiru" pediu tempo e voltou a se encontrar com Bornhausen. Não aceitou, porque não pretende se afastar da medicina.

Trecho de "O Ornitorrinco"

(Do ensaio desse nome, que chega às livrarias nesta semana. Na zoologia, trata-se de um bicho que foi réptil, virou mamífero e não deu para nada. Na política, o professor Francisco de Oliveira, autor do livro, sustenta que é o Brasil. Por causa do que o professor diz, há caciques do PT federal querendo processá-lo.)

- "O ornitorrinco está condenado a submeter tudo à voracidade da financeirização, uma espécie de "buraco negro"."
- "Sindicatos de trabalhadores do setor privado estão organizando seus fundos de previdência complementar, na esteira daqueles das estatais. É isso que explica recentes convergências pragmáticas entre o PT e o PSDB, o aparente paradoxo de que o governo Lula realiza o programa de FHC, radicalizando-o: não se trata de equívoco nem de tomada de empréstimo de programa, mas de uma verdadeira nova classe social que se estrutura sobre, de um lado, técnicos e economistas, doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT. A identidade dos dois casos reside no controle do acesso aos fundos públicos, no conhecimento do "mapa da mina". Há uma rigorosa simetria entre os núcleos dirigentes do PT e do PSDB no arco político, e o conjunto dos dois lados simétricos é a nova classe."
- "A alta proporção da dívida externa sobre o PIB demonstra que, sem o dinheiro externo, a economia não se move. É um adiantamento formidável: em 2001, o total da dívida externa sobre o PIB alcançou alarmantes 41% e o mero serviço dela, juros sobre o PIB, 9,1%. Há poucas economias capitalistas assim."
- "Nas formas da terceirização, do trabalho precário e, entre nós, do que continua a se chamar de "trabalho informal", está uma mudança radical na determinação do capital variável. É quase como se os rendimentos do trabalhador agora dependessem do lucro dos capitalistas."
- "Políticas piedosas tentam "treinar" e "qualificar" essa mão-de-obra [marginalizada], num trabalho de Sísifo, jogando água em cesto, acreditando que o velho e bom trabalho com carteira voltará quando o ciclo de negócios se reativar. Será o contrário."


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