São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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ELIO GASPARI

A crise produziu uma novidade: o empresário de passeata

Surgiu uma nova e sinistra figura: o empresário de passeata. Sai de onde menos se espera, transforma-se numa manifestação de trabalhadores e acaba onde todo mundo sabe: na porta do BNDES, na bolsa da Viúva.
Realizaram-se no Rio, em São Paulo e em Brasília, três grandes manifestações, pressionando o governo para emprestar dinheiro a empresas quebradas ou em atividades antieconômicas. Olhadas de longe, as manifestações são um retrato da gravidade da crise social em que FFHH e a ekipekonômica mergulharam o país. De perto, são tudo isso e mais uma manipulação demagógica e mistificadora.
Duas das três manifestações destinavam-se a conseguir um empréstimo do BNDES, capaz de dar sobrevida ao grupo Mappin-Mesbla, do empresário Ricardo Mansur. Outra, em frente ao Congresso, pedia ajuda para o programa do álcool. São dois casos diferentes na origem e no folclore, mas semelhantes no propósito.
Começando pelo caso das lojas Mappin e Mesbla. Nele resplandeceu a figura do empresário Ricardo Mansur.
Quem o visse na tarde de sábado, 14 de novembro passado, no Helvétia Pólo Country Club, poderia acreditar que estava na Inglaterra. Ele montava um bom cavalo e ambos vestiam pelo menos US$ 5.000 entre arreios e roupas. Foi uma tarde de pólo e champanhe com senhoras de chapéu. Reunia 180 donos de Porsches (US$ 180 mil cada um, na média).
A cena era um retrato do Brasil-Primeiro-Mundo. Mansur, a imagem do sucesso. Tinha avião, dois campos de pólo, casa em Londres e já jogara com o príncipe Charles. Nada mal para quem começou a vida aos 19 anos, com uma papelaria. Aos 20, comprou o laticínio Vigor, coalhado por dívidas. Juntou uma fortuna patibular, comprando empresas enforcadas.
Em 1996, fez dois grandes negócios. Tinha um pequeno banco e, com a ajuda de R$ 100 milhões do Proer, comprou uma velha casa da praça paulista. Seu braço financeiro passou a se chamar Crefisul. Depois, comprou a cadeia de lojas Mappin, fundada em 1913. Faturava mais de R$ 1 bilhão por ano, mas fechara 1995 com um prejuízo de R$ 20 milhões e um espeto de R$ 30 milhões no BNDES. Cacifado pelo Bradesco, Mansur ofereceu R$ 25 milhões, a prazo.
Em 1998, Mansur comprou a Mesbla, a quase centenária loja de departamentos do Rio. Vinha de uma concordata e, no ano anterior, perdera R$ 300 milhões. Em 1994, demitira 2.700 empregados. Reduzira o seu quadro de diretores de 40 para 10. Naquela época, chamava-se desemprego de reengenharia. Os funcionários, que chegaram a ser 14 mil, estão hoje reduzidos a 4.500.
Mansur nunca deixou faltar alfafa aos seus cavalos ou bônus aos seus executivos. No início do ano, depois de ter fechado nove lojas da Mesbla, saiu-se com esta:
"É mentira falar que fechar loja é pior para a companhia. É muito saudável para a empresa você redirecionar e ter o seu nicho".
Ninguém reclamou. Assim como ninguém reclamou quando ele disse que o Mappin ia "melhor" porque "fez vários cortes".
Enquanto dizia isso, estava quebrado. Pelas suas contas, devia R$ 50 milhões ao Bradesco. O Crefisul estava na tenda de oxigênio do Banco Central. Foi liquidado em março passado. Deixou 398 funcionários, uma dívida de R$ 120 milhões no BC.
Mansur fez sua fortuna nos patíbulos. Enquanto ganhou, ganhou. Quando perdeu, foi bater no BNDES. Com 19 pedidos de falência nas costas, queria um empréstimo de R$ 200 milhões. Não conseguiu. Foi substituído por outros negociadores e, nas últimas semanas, pelas passeatas.
As passeatas pedem que o BNDES empreste apenas R$ 17 milhões. Seria um sinal para que a banca restabelecesse os créditos do Mappin-Mesbla, emprestando-lhe R$ 102 milhões, livrando-o do sufoco. Coisa nenhuma.
O que se quer é o dinheiro da Viúva. Se a banca quer continuar cacifando Mansur, que o faça. Se não quer, que arroste. Entre banqueiros, fornecedores e tributos, ele deve R$ 1,1 bilhão. O que se está pedindo ao BNDES não é a preservação do emprego de 9.000 pessoas. É a proteção do dinheiro que a banca emprestou e não quer perder. Os bancos dizem que só renegociam os seus papagaios se o BNDES e o Banco do Brasil entrarem no negócio. Vale perguntar: por quê?
Nos últimos 15 anos, as lojas Mesbla e Mappin demitiram perto de 10 mil pessoas. Ninguém se lembrou de fazer passeata. Os cavalinhos continuaram comendo, e as diretorias, correndo. O problema social só apareceu quando o fogo chegou ao mercado financeiro. O ministro do Trabalho, Francisco Dornelles, comprometeu-se a conversar com o BNDES. Ao lado dele está o deputado Luiz Antonio de Medeiros, da Força Sindical e da base de apoio parlamentar de FFHH.
Essa preocupação tardia com o emprego dos funcionários das lojas é uma mistificação. Destina-se a meter a Viúva num negócio quebrado e a dívidas podres. Nem Dornelles nem Medeiros responsabilizaram publicamente os acionistas e diretores do grupo que nos últimos três meses demitiram cerca de 500 pessoas sem lhes pagar os direitos trabalhistas.
O BNDES não tem que se meter nas encrencas dos sócios e credores do Mappin e da Mesbla. A ruína faz parte do negócio e, enquanto Mansur viveu da ruína alheia, foi respeitado como um grande empresário.
O fechamento das lojas provocará desemprego e ruína para gente humilde, mas é isso que o governo está patrocinando pelo Brasil afora, com a participação de Dornelles e o apoio de Medeiros.
A questão deve ser mantida em seus termos reais. O grupo Mappin-Mesbla está quebrado porque deve R$ 1,1 bilhão. Informa-se que a cadeia de lojas americanas J.C. Penney ou a espanhola El Corte Ingles querem comprá-lo. Beleza. Pergunta-se o que querem e quanto pagam. Recebe-se o dinheiro e paga-se aos credores. Se for pouco, falta de sorte deles. Os credores levam o que puderem e aprendem a não dar crédito a quem não o merece. Perde quem tem que perder, compra quem quer comprar e os funcionários podem (ou não) continuar empregados, com novos empregadores. Tem sido assim desde que começaram as demissões na Mesbla e no Mappin.
Há centenas de lojas que não faliram, cujos donos nunca tiveram casa em Londres, banco, Proer, avião ou 40 diretores, nem casa em Angra. É gente que trabalha duro, não sabe telefone de ministro nem o endereço do BNDES.

Em Brasília, uma campanha popular pelo privilégio dos usineiros

Depois das passeatas da Mesbla e do Mappin, veio a manifestação dos trabalhadores da cana diante do Congresso Nacional. Foi o enésimo transformismo de um camaleão chamado Proálcool.
Esse programa foi concebido nos anos 70, dentro de uma perfeita lógica econômica. O barril de petróleo passara de US$ 2,90 para US$ 34. Acreditara-se que chegasse aos US$ 50. Com esses números, era negócio produzir álcool a US$ 40 o barril. Hoje o petróleo está a US$ 16.
Os carros movidos a álcool, que chegaram a ser mais de 80% da frota produzida anualmente, caíram abaixo de 1%. Mesmo assim, os interesses dos produtores de álcool sobreviveram. Receberam subsídios faraônicos e acumularam uma dívida de R$ 5 bilhões com o Banco do Brasil. (FFHH renegociou-a em 1996.)
Mesmo havendo argumentos ecológicos que amparam a idéia do uso do álcool nos veículos, a grande reivindicação da passeata de Brasília foi a preservação de empregos. O número de trabalhadores na indústria da cana varia de acordo com o vento. Ouve-se que são 300 mil, assim como se ouve que são 1 milhão.
Essa mão-de-obra está condenada à extinção. Sabe-se disso há mais de uma década e o governo pouco fez para requalificar um dos serviços mais desqualificados da economia nacional.
Os mesmos plantadores que levam o povo a Brasília estão substituindo os bóias-frias por máquinas. Cada colhedora faz o serviço de cem trabalhadores. Na região de Ribeirão Preto, em São Paulo, elas já estão colhendo 15% da safra, cortando 1.700 dos tão falados empregos que as passeatas parecem defender. Em cinco anos, metade da safra paulista será colhida por máquinas. Os empresários sabem que os empregos vão acabar. O que se pede não é a preservação de empregos, mas de privilégios.
Os interesses do álcool (amparados por uma forte bancada parlamentar) sustentam que ele é um combustível ecologicamente correto. Verdade, mas ouvir isso de um setor que continua incendiando canaviais durante a safra chega a ser uma piada. Foi a pedido dos plantadores de cana que FFHH vetou o artigo da Lei de Crimes Ambientais que proibia as queimadas. Ocupam uma parte das melhores terras do país para produzir combustível (enquanto São Paulo importa hortaliças de Goiás), queimam a terra, poluem o ar e falam de ecologia.
Na manifestação de Brasília, foram apresentadas como reivindicações dos trabalhadores as seguintes cobiças dos empresários:
1) a compra, pelo governo, de um estoque de 2 bilhões de litros de álcool. Para quê? Para reinaugurar com a cana-de-açúcar a política dos estoques de café da República Velha?
2) a concessão de incentivos fiscais para a produção de carros a álcool. Traduzindo: o governo renuncia à cobrança de impostos, para tornar mais barato um automóvel que as pessoas não querem comprar;
3) a retomada da produção de carros a álcool pelas montadoras. E por que não obrigá-las também a retomar a produção de carruagens e caravelas? Admitindo-se que os trabalhadores da cana sejam 300 mil, vale a pena fazer uma conta: se todo o dinheiro jogado na produção de álcool tivesse sido depositado num banco americano, só os juros seriam capazes de garantir US$ 3.000 por ano a 300 mil famílias, em caráter vitalício e hereditário.

Viva Aronson. Faliu, mas pagou

Na semana passada, quebrou em São Paulo a cadeia de lojas de eletrodomésticos G. Aronson. Chegou a ter 34 lojas e 5.000 empregados. Estava reduzida a três pontos e uma dívida de R$ 65 milhões. Sobreviveu a uma concordata, mas morreu na segunda. Chegou a faturar R$ 350 milhões e fechou as portas sem mercadoria suficiente para encher as vitrines.
Seu dono Gyrsz Aronson, de 82 anos, talvez nunca tenha posto o pé no BNDES. Começou com uma loja de peles, dava expediente na loja (onde foi sequestrado no ano passado) e atendia fregueses.
Ninguém chorou por Aronson. Nem a Força Sindical, muito menos o ministro do Trabalho. Pois esse senhor calvo e falante deveria ser levado a Brasília, com direito a homenagem no Palácio do Planalto.
Num país que tem como patrono da indústria um empreendedor que quebrou (o Barão de Mauá), homenagear um empresário falido seria uma bela iniciativa. Ele poderia contar a FFHH como os juros e a inadimplência quebram o comércio. Não há o que temer. Aronson não quer dinheiro do BNDES nem distribuir culpas. Ele disse à repórter Marta Barcellos: "Meu mal é que só sei comprar e vender. Não sabia administrar. Muita coisa saía pelo ralo".
O mercado absorveu uma parte das suas lojas, provendo alguns empregos perdidos.
Aronson deveria ser levado ao Planalto porque, ao falir, pôde dizer o seguinte: "Meu maior orgulho foi indenizar todos os 900 funcionários que tive".
Esse orgulho o pessoal do Mappin-Mesbla não tem, mas quer o socorro do BNDES, cujos recursos vêm do Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT.

O fundador da GM e a caspa

A ruína é um risco inerente ao capitalismo. O problema do capitalismo brasileiro é que ele funciona como um jogo no qual um lado nasce para a ruína. É o de baixo. Outro, vive com a garantia de que haverá de receber dinheiro da Viúva. Como esse sistema não funciona, quebra a cada 20 anos.
Vale a pena contar a história de uma ruína num país onde o capitalismo funciona.
No início do século, um fabricante de carruagens chamado William Durant soube que um tal de David Buick montara um motor a explosão. Depois, conheceu Louis Chevrolet, que desenhara uma carroceria leve. Dotado de uma prodigiosa imaginação, criou uma empresa e deu-lhe o nome de General Motors. Pretendia vender 1 milhão de automóveis por ano. Tempos depois, viu uma pequena máquina capaz de produzir gelo. Abriu um concurso e chamou a engenhoca de Frigidaire.
Durant era um daqueles gênios que associam o avanço tecnológico ao progresso industrial. Chegou a acumular uma fortuna de US$ 1 bilhão (em dinheiro de hoje), mas não era bom administrador. Vendeu sua parte na GM, foi para a Bolsa de Valores, ganhou o que quis e caiu fora antes da quebra de 1929. Um ano depois, apostou o tudo na sua recuperação. Perdeu. Tentou um novo negócio com carros. Perdeu.
Em 1936, aos 75 anos, foi a bancarrota. Sobraram-lhe só dívidas e a roupa do corpo. Abriu uma lanchonete. Servia fregueses e lavava pratos. Perdeu-a. Morreu em 1947, certo de que ficaria milionário, pois supunha ter descoberto a cura da caspa.
Trajetórias como a de Bill Durant construíram o capitalismo americano. É a falta delas que corrói o brasileiro.


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