São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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BRASIL PROFUNDO

Falta de verba e interferência política dificultariam combate

10 mil trabalhadores vivem em condição de escravidão

FÁTIMA FERNANDES
CLAUDIA ROLLI

DA REPORTAGEM LOCAL

O Brasil do século 21 exibe dados vergonhosos: o número de trabalhadores em condição de escravidão chega a 10 mil, concentrados no Norte e no Nordeste. A informação é da Comissão Especial para o Combate ao Trabalho Escravo do Ministério da Justiça.
No Pará, 75 denúncias de trabalho escravo foram registradas neste ano, envolvendo mais de 3.000 pessoas, mais do que o dobro de 2001, informa a Comissão Pastoral da Terra. Há denúncias de que o Ministério do Trabalho colocou em marcha lenta as fiscalizações por falta de verba e por interferência de políticos.
Desemprego elevado e falta de punição para quem escraviza ou explora o trabalhador são as principais razões apontadas por quem combate o trabalho forçado para justificar a presença de "escravos" no país. Há ainda, dizem eles, descaso do governo para tratar do assunto, apesar de ter reconhecido oficialmente o problema em 95.
Frei Henri des Roziers, coordenador da Comissão Pastoral da Terra no Sul do Pará, diz que tem ligado quase diariamente para o Ministério do Trabalho para pedir fiscalização no Pará, já que denúncias de trabalhadores que fogem da condição de escravos chegam todos os dias. "O que me disseram é que as fiscalizações, que já não eram muitas, estavam suspensas por falta de verba."
Funcionários do Ministério do Trabalho encaminharam recentemente denúncia a juízes do Trabalho para informar que as equipes móveis de fiscalização, formadas por pressão internacional, estão sendo desmontadas. A Folha obteve com exclusividade cópia do documento, em que informam que essas equipes têm de enfrentar também o boicote de delegados regionais do trabalho que barram ou dificultam a entrada desses grupos em seus Estados.
A Folha apurou que, depois de a Polícia Federal libertar trabalhadores da fazenda do deputado Inocêncio de Oliveira (PFL-PE), houve ordens para que nenhum fiscal do trabalho repassasse relatórios ou fornecesse informações a procuradores, sem antes comunicar o Ministério do Trabalho.
Para o procurador-geral do Trabalho, Guilherme Mastrichi, "não dá para esperar grande projetos nem fazer relatórios, enquanto o trabalhador continua morrendo no país". Ele disse que uma das formas de coibir o trabalho forçado é com ações civis coletivas para reparar os danos morais causados aos trabalhadores "escravizados". O pedido de indenização é de R$ 1.000 por dia por trabalhador.

Alastrado pelo país
No Pará, os fazendeiros utilizam os "escravos" para a derrubada de florestas para a criação de pastos. "A escravidão aumenta porque não existe alternativa de emprego", afirma o frei Xavier Plassat, coordenador da campanha contra o trabalho escravo da CPT.
Os trabalhadores são chamados em alguns pontos conhecidos das cidades, por meio de um carro de som, pelos chamados "gatos" -empreiteiros que trabalham para os fazendeiros. São recrutados principalmente na Paraíba e no Rio Grande do Norte. "Oferecem R$ 400 de abono e, como os trabalhadores estão na miséria, acabam aceitando a oferta sem entender que já saem de lá com dívidas da passagem", afirma. Os fazendeiros também colocam produtos à venda, o que facilita e estimula o endividamento.
O Ministério Público do Trabalho investiga denúncias de trabalho escravo na colheita de maçãs em pomares localizados em Vacaria (RS). Oito fazendas se comprometeram, por meio de termos de ajuste de conduta, a melhorar as condições de habitação, higiene e saúde dos trabalhadores. As multas chegam a R$ 30 mil.
Em São Paulo, procuradores do trabalho investigam o emprego de mão-de-obra boliviana clandestina e em condição de trabalho degradante em confecções da zona norte. Há um ano, alguns coreanos foram autuados por empregar bolivianos sem visto, alojados em condições precárias.
Em Mato Grosso do Sul, 87 trabalhadores submetidos a condição semelhante à de escravos, em uma carvoaria em Água Clara, reivindicaram os salários atrasados havia mais de um ano a um juiz do trabalho que foi ao local por meio de vara itinerante.

Em números
De 1995 a 2002, 4.900 "escravos" foram libertados pelos grupos móveis que integram o Gertraf (Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado), formado por sete ministérios, entidades não-governamentais e sob coordenação do Ministério do Trabalho. Desse número, 1.468 foram resgatados só neste ano.
O problema é que os fazendeiros voltam a ter escravos. Em 2001, segundo a CPT, nove fazendas voltaram a escravizar trabalhadores mesmo depois da autuação do grupo móvel de fiscalização e, neste ano, dez fazendas.
"Nenhum fazendeiro foi condenado por ter escravos", afirma. Há casos de trabalhadores, segundo José Batista Afonso, advogado e coordenador da CPT da região de Marabá, que são ameaçados de morte em caso de fuga.
"Não se faz nada porque tem deputado no meio disso, grandes pecuaristas, pessoas ligadas a grandes grupos econômicos", diz.
A OIT aprovou projeto de cooperação técnica com o governo no valor de US$ 1 milhão para fortalecer as instituições envolvidas no combate ao trabalho forçado.
O problema é tão grave no país que Tribunal Superior do Trabalho levou ao Ministério da Justiça duas propostas: a criação de varas itinerantes para atender "in loco" aqueles que estão sendo submetidos a condições análogas a de escravidão e a criação de projeto de lei para que as questões relativas ao trabalho escravo passem a ser de competência do juiz do trabalho, e não da Justiça federal ou estadual, como é hoje. "É preciso confiscar as terras e colocar na cadeia quem escraviza o trabalhador", diz o ministro Francisco Fausto, que preside o TST.

Outro lado
A secretária nacional de Inspeção do Trabalho, Vera Olímpia Gonçalves, afirmou que não houve corte de verbas nas operações dos grupos móveis de combate ao trabalho escravo nem cancelamento de ações.
Em setembro, foram sete operações em Rondônia, Pará e Mato Grosso do Sul -duas delas continuam em andamento. Outras três estão previstas para começar nas próximas semanas no Maranhão, no sul do Pará e no Mato Grosso.
De 95 a 99, R$ 1,843 milhão foi gasto no combate ao trabalho forçado (inclui orçamento previsto e recursos materiais). No período de 2000 a 2002, R$ 2,923 milhões.
Nas contas do governo, R$ 5,5 milhões foram gastos em indenização aos trabalhadores libertados. Para ela, os números mostram que as ações continuam.
De 95 a 98, diz, foram 777 libertados, enquanto nos últimos três anos foram 3.484. Neste ano, foram visitados 44 locais -50% no Pará- com 1.468 trabalhadores libertados até a última sexta-feira.
"Apesar de deslocarmos cada vez mais auditores para as fiscalizações, é claro que não vamos conseguir atender todas as denúncias. Mas estamos ampliando isso", afirmou a secretária.



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