São Paulo, quarta-feira, 06 de outubro de 2004

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ELIO GASPARI

No segundo turno, o eleitor virou gado

Os dirigentes políticos nacionais tiveram uma recaída de coronelismo abusivo. Deveriam se aconselhar com o coronel Justino (Mauro Mendonça) de Cabocla. Em quase todas as cidades onde haverá segundo turno, os maganos anunciam que buscarão o apoio deste ou daquele candidato derrotado. Fazem isso como se a coisa funcionasse assim: os coronéis vencidos apóiam os candidatos vencedores, e a choldra faz o que seu mestre mandar.
Um cidadão pode muito bem ter votado, por convicção, num candidato derrotado, sabendo que seria batido. Ele não perdeu a eleição, como os palmeirenses perderam para o São Paulo. Há mais nobreza em perder o primeiro turno de cabeça erguida do que em ganhar o segundo de nariz tapado.
Os coronéis tratam a política como se apoios, alianças e negociações fossem modalidades de cambalacho. Problema deles. Felizmente, a patuléia não é boba.
Para ilustrar a mediocridade dos personagens que emergiram com os acordos de gado eleitoral, vale a pena revisitar uma história meio velha. A comparação é exagerada, mas a beleza do exemplo permite a licença.
Em maio de 1940, Winston Churchill acabara de assumir o cargo de primeiro-ministro. A força expedicionária inglesa (250 mil homens) estava encurralada em Dunquerque. Os alemães avançavam sobre a França, e o chefe do Estado-Maior inglês afirmava: "Este é o fim do Império Britânico". Nesses dias dois geniais pesquisadores, Charles Madge e Tom Harrison, trabalhavam no precursor das pesquisas de grupo, um programa chamado Mass Observation, M-O para os íntimos. No dia 19, antes da hora em que Churchill falou pela primeira vez ao seu povo, eles registraram que se falava em "vitória alemã". Cinco dias depois, um olheiro do M-O registrou o comportamento de algumas mulheres: "Chegaram ao ponto de declarar que dariam boas-vindas a Hitler. [...] Pelo menos teriam seus maridos de volta". Para quem gosta de pesquisas com percentagens, no dia 25 de maio o M-O informou:
Homens (%) e mulheres (%)
Alarmismo 27 e 31
Otimismo 30 e 18
Dúvida ("não sei") 21 e 30
Virginia Woolf escrevia em seu Diário: "Os alemães parecem jovens, saudáveis, inventivos. Nós vamos nos arrastando atrás deles". Sua namorada, Vita Sackville-West, e o marido, Harold Nicolson, combinaram matar-se se a ilha fosse invadida.
Nesse cenário de real valor, surgiu a possibilidade de um entendimento com Hitler, por intermédio de Mussolini. Era patrocinada por Lord Halifax, um leal servidor do Estado inglês. Seria um grande acordo de segundo turno. Na política da marquetagem, Churchill seria considerado um maluco que falava em "sangue, suor, lágrimas e trabalho duro".
Pois o maluco chutou o balde. Fez isso nas reuniões secretas do Gabinete, sem que o mundo soubesse o que acontecia. Recusou a proposta italiana, chamou Halifax para uma conversa no jardim (a respeito da qual nada se sabe), manteve a Grã-Bretanha na guerra, tomou um uísque com soda e foi dormir. Esse homem, nesses dias, salvou a civilização ocidental, amparado apenas na idéia do que achava certo. Sem pesquisas, malandragens, acordos.
Os sucessores do coronel Justino podem ficar dizendo bobagens, mas quem for a uma livraria em busca de "Cinco Dias em Londres", do historiador John Lukacs, poderá se livrar deles, substituindo-os por uma grande leitura no feriadão do segundo turno. Se for o caso, vinga-se de quem pensa que a choldra é idiota.


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