São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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REGIME MILITAR

Tenente-coronel diz que troca de covas visava evitar peregrinação

Exército transferiu os corpos de guerrilheiros do Araguaia

Alan Marques/Folha Imagem
Morador de Xambioá (TO) limpa a área em que podem estar os corpos dos guerrilheiros do Araguaia. Operação da Secretaria de Direitos Humanos tenta encontrar as ossadas


ANDRÉA MICHAEL
ENVIADA ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO

Quebrando um silêncio de 30 anos, o tenente-coronel Licio Ribeiro Maciel, 74, disse à Folha que, por ordem do general Antonio Bandeira, corpos de militantes comunistas da guerrilha do Araguaia, antes enterrados na mata, foram retirados das covas e levados para outros locais para evitar romarias da população.
Maciel combateu no Araguaia. O general Bandeira, mencionado por ele, comandou as primeiras operações de repressão à guerrilha -movimento armado organizado pelo PC do B e combatido pelo Exército entre 1972 e 1975, no sul do Pará e no norte do Tocantins. O foco guerrilheiro foi vencido somente depois de uma terceira incursão militar, a qual é caracterizada por Maciel como o momento em que a "barata voa".
O traslado dos corpos, por ordem de Bandeira, sugere o tenente-coronel, poderia ser uma explicação para o fato de, decorridos 30 anos, as únicas ossadas apontadas como sendo de guerrilheiros terem sido encontradas no cemitério de Xambioá e na reserva indígena de Suruí.
Na casa da filha do general, Márcia, a empregada informou que Antônio Bandeira havia morrido no final de 2003. Márcia estava em viagem.
Até hoje, só houve o reconhecimento da ossada da guerrilheira Maria Lúcia Petit. Uma segunda ossada, que é apontada como sendo do guerrilheiro João Carlos Haas Sobrinho, ainda está em análise, na Argentina.
"Eu soube que o general Bandeira mandou desenterrar uns corpos, mas só para confirmar alguma coisa. Houve romarias. O pessoal ia para a cova do fulano para fazer reza. Ia se transformar em um local de peregrinação. Eu soube que o general mandou mudar o local de algumas covas. Devem ter sido transferidas para o cemitério da cidade. Se mudassem de local na mata, só mudava o local da reza."
Homem do CIE (Centro de Inteligência do Exército) e hoje na reserva, em outubro de 1973 o engenheiro de telecomunicações Licio Ribeiro Maciel comandou o GC (Grupo de Combate) que matou o guerrilheiro Zé Carlos, codinome utilizado por André Grabois, filho de Maurício Grabois, o mais alto comandante comunista atuando em campo na época.
Um grupo comandado por Zé Carlos assaltara um posto da Polícia Militar, levando armas e munição. Fugindo pela mata, atrapalhados pelo carregamento, perderam velocidade e deixaram rastros. Maciel os encontrou, depois de três dias de perseguição.

No lombo de burros
No confronto, um militar saiu ferido. Outro, inexperiente, ficou "vomitando seguidamente e aparvalhado".
O guerrilheiro João Araguaia conseguiu fugir. Outros três companheiros dele morreram.
Conta Maciel que, no dia seguinte, sua tropa amarrou os corpos já rijos pelo pescoço e pelas pernas, no lombo de burros, e os levou até um local chamado "sítio da Oneida".
Dias depois, no mesmo outubro de 1973, Maciel protagonizou um outro combate histórico -a seu juízo, menos importante do que a morte de Grabois. Ao encontrar a guerrilheira Sônia (Lúcia Maria de Souza) e, segundo conta, dar-lhe voz de prisão, diante da resistência, atirou na perna dela.
Em revide, Sônia, ao conseguir recuperar sua arma, atirou no rosto e na mão de Maciel -que ficou surdo do ouvido direito. Um terceiro tiro, antes de a guerrilheira ser morta, alvejou o major Sebastião Curió -um dos militares que mais atuaram no combate aos comunistas e que hoje é prefeito de Curionópolis (PA).

Cabeças cortadas
Ao longo de uma conversa de mais de oito horas, no Clube Militar do Rio de Janeiro, cidade em que mora, Maciel contou em detalhes o dia em que foi escalado para operar o projetor de slides em uma reunião secreta com o então ministro do Exército, Orlando Geisel.
No ministério, em Brasília, fora de suas atribuições, ele operou o equipamento que exibiu a Geisel dois slides mostrando a cabeça cortada de um militante comunista morto em 73.
A decapitação teria sido, segundo o tenente-coronel, obra de índios suruís, em troca de recompensa financeira a militares. "Foi um ou dois, eu não sei. Só chegou a Brasília em fotografia, e foi mal recebida, porque é uma coisa muito ruim, mas explicável."
Maciel, responsável, em abril de 1972, pela prisão do hoje presidente nacional do PT, José Genoino -que atuava na guerrilha com o codinome Geraldo-, também revelou à Folha que a primeira pista concreta de campos guerrilheiros no Pará surgiu em documentos apreendidos com Carlos Marighella, morto em São Paulo, em 1969. Coube a Maciel, segundo conta, localizar a área.
Vestido à paisana e se apresentando ora como engenheiro da Embratel, ora como policial federal, Maciel, sob o codinome de Doutor Asdrúbal, percorreu fazendas da região nas quais havia concentração de trabalhadores, tendo como norte a estrada Belém-Brasília em construção.
Sua principal pista para apontar Xambioá como o foco guerrilheiro foi a resistência que a população local lhe dispensou. "Era o único lugar no Brasil onde a gente era maltratado."

E-mails
Maciel fez revelações à Folha em diferentes momentos, ao longo dos meses de janeiro e fevereiro. Começou com um relato destinado à sua turma na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), na qual se formou em 1952, instigado pela publicação, em 2002, do livro "A Ditadura Escancarada", do jornalista Elio Gaspari.
A íntegra do relato, obtida pela Folha, levou a uma troca de e-mails contendo mais de 80 questionamentos da reportagem. Depois, concordou em receber a repórter para uma entrevista gravada, no Rio de Janeiro.
Em 3 de março, depois da entrevista, Maciel ainda respondeu a um último e-mail.
Nas informações reunidas, há contradições na descrição dos procedimentos adotados diante dos feridos e corpos resultantes dos combates. Feridos seriam levados para socorro médico. Maciel afirma que, depois de entregar um comunista alvejado à base, não tinha mais conhecimento de seu destino.
Quanto aos corpos, o procedimento de praxe, declara, era enterrar no local da morte, logo depois da identificação, feita pela coleta de digitais na tradicional almofada de tinta. Mas isso não era levado ao pé da letra. Corpos teriam sido deixados para trás, conforme conta, porque a prioridade era ir à caça de novos inimigos.

Arquivos
Quanto à existência de arquivos oficiais que permitam resgatar a memória da guerrilha, Maciel segue o discurso do general Bandeira: "Esse pessoal [que combateu na guerrilha] tem dossiê, tem arquivo, como o general Bandeira tinha. Tem gente que tem dossiê quentíssimo". Conta, no entanto, que para si mesmo não guardou nenhum documento.
De camisa amarela e calça jeans, às vezes sorrindo, às vezes com lágrimas nos olhos, Maciel apresentou sua proposta para enterrar de vez o assunto guerrilha do Araguaia: "Bota uma estátua lá em Xambioá pelo guerrilheiro desconhecido e está acabado".
Condecorado, em 20 de outubro de 1972, com a Medalha do Pacificador com Palma, pela localização da área da guerrilha, Maciel não aceita tratar os comunistas como vítimas. "Eles nos agrediram. Mataram três companheiros nossos antes de morrer o primeiro deles. Então, só por essa agressão, mereciam ter levado o fim que levaram. Morreram feito cachorro." Maciel não se deixou fotografar.


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