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LAÇOS HISTÓRICOS
Para Durão Barroso, que vem ao Brasil, a região ainda não superou um sentimento de inferioridade
Premiê luso vê "complexo" de elites da AL
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A LISBOA
O primeiro-ministro de Portugal, José Manuel Durão Barroso,
chega ao Brasil, para a reunião
anual de cúpula com seu colega
Luiz Inácio Lula da Silva, na segunda-feira, com uma crítica pesada às elites latino-americanas:
"O problema é que as elites da
América Latina muitas vezes têm
ainda um complexo de inferioridade, que nós, em Portugal e na
Espanha, ultrapassamos nos últimos anos. Em vez de estarem com
complexo, que façam o melhor
para o seu país, que utilizem as estruturas democráticas para desenvolver o seu país, nomeadamente a questão da estratificação
social que é o grande problema da
América Latina".
Durão Barroso, 48 anos a completar no dia 23 próximo, chefia o
governo português desde abril de
2002, como líder do PSD (Partido
Social Democrata), que, apesar do
nome, é considerado de direita no
xadrez político local.
Apesar dessa identificação, ele
não economiza elogios ao presidente brasileiro, a ponto de cometer uma inconfidência: "Espero
que o presidente [dos EUA, George W.] Bush me perdoe fazer esta
revelação, mas ele já me disse que
tem grande simpatia pessoal por
ele [Lula]. Gostou muito dele.
Houve uma boa química entre os
dois. O que não me admira nada,
porque conheço ambos e sei que
são pessoas muito diretas, muito
frontais".
Essa simpatia não impede, no
entanto, que Durão Barroso venha com más notícias a respeito
da principal reivindicação brasileira nas negociações comerciais
globais e com a União Européia:
"Eu acho muito difícil, falando
com franqueza, haver no futuro
imediato um desmantelamento
da proteção agrícola na Europa,
porque, em alguns países, há
compromissos muito fortes em
relação a esse setor".
O primeiro-ministro, formado
em Direito pela Universidade de
Lisboa, professor visitante da
Universidade de Georgetown
(EUA), falou à Folha no final da
tarde da última quarta-feira, no
Palacete de São Bento, a residência oficial dos governantes portugueses, que é, ele própria, uma espécie de lembrete dos laços históricos Brasil-Portugual: sua construção começou, em 1877, por ordem de Joaquim Machado Cayres, um emigrante português que
fez fortuna no Brasil.
A seguir, os trechos principais
da entrevista.
Folha - Portugal parece ter perdido o apetite por investimentos no
Brasil. Caiu muito mais do que em
outros países...
José Manuel Durão Barroso - O
que é extraordinário é que Portugal, com a sua dimensão, atingiu
um pico de investimentos em
uma determinada fase que não
pode, evidentemente, manter.
Mesmo assim, Portugal, em 2002,
foi o sexto maior investidor no
Brasil. Considerando que este é
um país de 10 milhões de habitantes e que não é um dos mais ricos
do mundo, é notável, o que mostra a confiança no Brasil. Isso é indiscutível, mas obviamente não
podemos manter o nível excepcionalmente elevado para o qual
contribuíram duas das maiores
empresas portuguesas, a PT (Portugal Telecom) e a EDP (Eletricidade de Portugal). O que está a
haver é uma mudança qualitativa
interessante. Já não são só as
grandes empresas que fazem investimentos. São pequenas e médias empresas que estão presentes
na área do turismo.
Folha - O fato de as duas economias terem crescido pouco ou nada
não prejudica esse fluxo?
Durão Barroso - Não podemos
confundir estrutura com conjuntura. Portugal está a sair, neste
momento, de uma fase de ajustamento que era indispensável depois de uma expansão excessiva
do consumo público e privado.
Como estamos no Pacto de Estabilidade e Crescimento da Europa
[que exige um déficit orçamentário não superior a 3% do Produto
Interno Bruto] e queremos cumpri-lo, tivemos que adotar uma
política muito rigorosa do ponto
de vista orçamentário. Mas Portugal vai voltar a crescer, já este ano,
de acordo com todas as previsões
independentes. E eu penso que,
em 2006 e 2007, teremos já níveis
de crescimento muito, muito importantes. Crescer acima da média da União Européia. E o Brasil?
O Brasil é a nona economia do
mundo em Paridade do Poder de
Compra [que mede o tamanho de
uma economia de acordo com os
preços e a capacidade de compra
de seus habitantes]. O Brasil está à
frente do Canadá e da Rússia e vai
continuar assim. O Brasil estará
sempre, mesmo que haja algumas
dificuldades, entre as sete ou oito
maiores economias do mundo.
Sinceramente, a mensagem que
quero passar, quer aos portugueses, quer aos brasileiros, é de confiança e de aposta estratégica de
Portugal no Brasil e também do
Brasil em Portugal.
Folha - Essa aposta estratégica,
na questão específica do investimento, inclui, pelo menos de parte
do empresariado português, o desejo de que os brasileiros invistam
em Portugal. Isso tem se dado?
Durão Barroso - Há projetos
muito interessantes em curso no
momento, como os da Companhia Siderúrgica Nacional que estão em fase muito avançada de
preparação. É uma via muito interessante também para o Brasil,
porque dá-lhe acesso a todo o
mercado europeu. Quando hoje
em dia se está em Portugal, não se
está em um mercado de 10 milhões de habitantes, mas no maior
mercado do mundo, em termos
de poder de compra, a partir de 1º
de maio [dia em que mais 10 países entram para a União Européia]. Sei, até porque tenho muitas ligações pessoais e familiares
no Brasil, que muitos empresários
brasileiros olham para Portugal
como uma porta natural de entrada no mercado europeu. Não tenho a pretensão de dizer que seja
a única. O Brasil tem dimensão e
competência para entrar por
qualquer país europeu. Não pretendo de forma alguma estar a ensinar os brasileiros o que devem
fazer. Mas Portugal, à partida, oferece condições intangíveis, de boa
vontade, para o investimento brasileiro. O que me desilude ainda
um pouco, para falar com franqueza, é o baixíssimo nível das
trocas comerciais. Como é que,
apesar de toda a ligação humana,
pessoal, o Brasil foi o 22º fornecedor de Portugal, e Portugal exporta para o Brasil menos de 0,5%?
Não é normal.
Folha - O sr. teria alguma hipótese para explicar esse baixíssimo intercâmbio?
Durão Barroso - Eu penso que a
dificuldade pode estar, talvez, no
fato de que não temos, nem em
um nem em outro país, o conhecimento dos circuitos de distribuição do outro. Há, de um e do
outro lado, dificuldades de natureza administrativa e burocrática.
Para dar um exemplo concreto: o
caso dos vinhos. No Brasil, há
uma boa imagem dos vinhos portugueses e, no entanto, o vinho
português ainda não passou muito daquilo que se chama o mercado português (dos portugueses
ou seus descendentes no Brasil). E
eu sei de amigos brasileiros que
querem vinho português e nem
sempre o encontram no mercado
normal de distribuição.
Folha - O sr. assinou com o presidente Lula um convênio prevendo
a regularização da situação dos
brasileiros em Portugal e dos portugueses no Brasil, mas há queixas
de morosidade na aplicação do
convênio, embora se reconheça
que não há má vontade. Existe algo
que os dois governos possam fazer
a respeito?
Durão Barroso - O que os dois
governos fizeram está feito e bem
feito. Não sei se sabe que, aqui, eu
próprio fui criticado por ter sido,
na opinião de alguns, demasiado
generoso em relação aos brasileiros e não ter dado o mesmo tratamento a outras comunidades residentes em Portugal. Mas eu expliquei isso, obviamente, pelas relações históricas especialíssimas
que existem entre Portugal e Brasil. Nós, governo português, fomos criticados por termos ido
longe demais quando comparado
com o que fizemos em relação a
outras comunidades. Com todo o
respeito e amizade, o Brasil é para
nós muito mais importante que a
Ucrânia, apesar de, neste momento, haver muito mais ucranianos em Portugal do que brasileiros. Se há algum problema burocrático, posso assegurar que
não há, de parte do governo português, nenhuma má vontade. Ao
contrário, o que queremos é ajudar a resolver a situação dos brasileiros em Portugal. Disso não há a
menor dúvida.
Folha - Há controvérsias sobre o
relacionamento do Brasil com os
Estados Unidos. O presidente Lula
parece ter uma relação pessoal
muito boa com o presidente Bush,
mas há divergências claras, por
exemplo, na Área de Livre Comércio das Américas, o Brasil tomou
posição frontalmente contrária à
guerra no Iraque. Há até setores
muito conservadores nos Estados
Unidos que começaram a falar em
"eixo do mal" na América Latina,
formado pelos presidentes Lula,
Hugo Chávez, da Venezuela, e Néstor Kirchner, da Argentina. A Europa vê algo parecido, acha o presidente Lula anti-americano, ou isso
não é um assunto?
Durão Barroso - Não é um assunto. Não apenas Portugal, mas o
conjunto da Europa, vemos com
muita simpatia o presidente Lula.
Sinceramente. E até entendemos
que está a fazer reformas muito
difíceis em um país que é uma
grande economia mas que tem dificuldades que são conhecidas.
Espero que o presidente Bush me
perdoe fazer esta revelação mas
ele já me disse que tem grande
simpatia pessoal por ele. Gostou
muito dele. Houve uma boa química entre os dois. O que não me
admira nada, porque conheço
ambos e sei que são pessoas muito diretas, muito frontais.
Folha - Teria sido ao sr. que o presidente Bush disse que o presidente Lula "é de esquerda, mas gosto
muito dele"?
Durão Barroso - Exatamente. Se
não foi isso, foi muito parecido
com isso o que me disse o presidente Bush do presidente Lula,
porque nós falamos bastante do
Brasil. Há posições diferentes [entre Brasil e Estados Unidos], mas
isso não é grave. O importante é
que Brasil e Estados Unidos entendam que são dois grandes países do hemisfério e que é útil que
se entendam sobretudo em questões do comércio global. Temos
que encontrar uma plataforma
mínima. Espero, aliás, que a reunião União Européia/América
Latina no México, em maio, seja
uma plataforma.
Folha - Mas aí voltamos sempre
ao tema do protecionismo agrícola
europeu. Portugal pode fazer alguma coisa concretamente para que
se materialize a prometida liberalização agrícola?
Durão Barroso - A questão agrícola é difícil às vezes de explicar
aos nossos amigos fora da Europa. Vou tentar. Portugal é hoje tudo menos um país agrícola. O
produto agrícola de Portugal é 6%
ou menos. E mais: as produções
mediterrâneas, como azeite e vinho, não estão bem tratadas no
acordo [agrícola europeu]. Agora,
é preciso ver que a política agrícola comum na Europa é quase o
acordo fundacional. Simplificando, os franceses aceitaram a indústria alemã, e os alemães aceitaram a agricultura francesa. Portanto, há uma rigidez muito grande. Acho muito difícil, falando
com franqueza, haver no futuro
imediato um desmantelamento
da proteção agrícola na Europa,
porque, em alguns países, há
compromissos muito fortes em
relação a esse setor.
Folha - A CPLP, a Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa, parece muito mais um clube de boas intenções do que algo concreto. Imagino que o sr. vai discutir com o
presidente Lula a CPLP. O que se
pode fazer de concreto para transformar essa comunidade de países
em algo mais do que uma afinidade
puramente lingüística?
Durão Barroso - Temos que fazer
mais, mas a verdade é que a CPLP
tem feito mais do que parece. São
Tomé e Príncipe e Guiné Bissau
[antigas colônias portuguesas,
hoje integrantes da CPLP] tiveram crises recentemente e quem
deu para todo mundo a leitura
dessas crises foi a CPLP. Quando
o presidente de São Tomé e Príncipe estava na Nigéria, houve uma
tentativa de golpe de Estado. A
CPLP de imediato criticou esse
golpe de Estado e disse que seria
ilegítimo. Foi essencial para que
os rebeldes recuassem e o presidente Fradique de Menezes voltasse em paz e fosse restaurada a
legitimidade constitucional. No
caso da Guiné Bissau, foi exatamente o contrário. Houve um golpe de Estado contra um regime
que já não estava a respeitar as bases democráticas com que tinha
sido eleito. E foi a CPLP que deu a
leitura nas Nações Unidas de que
se devia dar o benefício da dúvida
e até o apoio ao novo poder da
Guiné Bissau. E isso foi seguido.
De maneira discreta, é certo, a
CPLP tem desempenhado um papel positivo e com grande coesão.
Eu gostaria que a CPLP fosse mais
conhecida no Brasil.
Folha - A América Latina é uma
região que vive de crise em crise,
vários presidentes foram afastados
não pelo clássico golpe militar, mas
por manifestações de rua. Como os
dois países fundadores da comunidade ibero-americana, Espanha e
Portugal, vêem essa instabilidade
latino-americana?
Durão Barroso - Vamos começar
com um exemplo positivo que é o
Brasil. A transição no Brasil foi
notável. De acordo com a teoria
da democracia, o regime democrático está plenamente institucionalizado quando há várias mudanças de orientação política, e isso não põe em causa as regras institucionais básicas do regime. E
foi o que o Brasil conseguiu. O
presidente Lula deu um grande
exemplo, ao ter perdido várias vezes e, mesmo assim, ter continuado a disputar e finalmente vencer,
acabando com aquela idéia de
que havia um partido que podia
ser muito importante mas nunca
chegaria ao poder. Isso é muito
importante para alguns esquerdistas que há na América Latina e
que se consideravam fora do sistema. E alguns andam ainda a pôr
bombas em vez de procurar chegar ao poder pelo sufrágio universal. É notável quando vemos um
partido como o PT, com ideologia
de esquerda, pelo menos foi assim
que nasceu, chegar ao poder pela
via democrática. Infelizmente, em
alguns países latino-americanos,
temos partidos de esquerda que
se refugiam em atitudes marginais contra a democracia. Vou falar com franqueza. Eu gosto muito da América Latina, mas a América Latina tem um problema que,
felizmente, Espanha e Portugal já
ultrapassaram. O problema é que
as elites da América Latina, muitas vezes, têm ainda um complexo
de inferioridade, que nós em Portugal e na Espanha, ultrapassamos nos últimos anos. Os espanhóis e portugueses, até pouco
tempo, consideravam-se europeus de segunda. E felizmente a
nossa integração na União Européia mostrou-nos que éramos capazes, tão bons ou melhores [do
que os demais europeus] em muitos aspectos. Em algumas elites latino-americanas, há um complexo em relação aos Estados Unidos, uma espécie de inveja. Em
vez de estarem com complexo,
que façam o melhor para o seu
país, que usem as estruturas democráticas para desenvolver o
seu país, nomeadamente a questão da estratificação social que é o
grande problema da América Latina. Se eu fosse latino-americano,
a primeira coisa que faria para desenvolver o meu país seria procurar reduzir as desigualdades sociais, mas não com demagogia
populista, porque o populismo é
uma forma de estupidez absoluta,
mas com programas racionais
que procurassem integrar o país
no comércio global, na confiança
global. O que verifico muitas vezes é que, nas elites latino-americanas, há uma racionalização do
medo e da impotência, que se
transforma numa espécie de ressentimento contra a globalização,
ressentimento contra os americanos, que, muitas vezes, é uma desculpa para as próprias elites porem seu dinheiro em Miami.
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