São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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LAÇOS HISTÓRICOS

Para Durão Barroso, que vem ao Brasil, a região ainda não superou um sentimento de inferioridade

Premiê luso vê "complexo" de elites da AL

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A LISBOA

O primeiro-ministro de Portugal, José Manuel Durão Barroso, chega ao Brasil, para a reunião anual de cúpula com seu colega Luiz Inácio Lula da Silva, na segunda-feira, com uma crítica pesada às elites latino-americanas:
"O problema é que as elites da América Latina muitas vezes têm ainda um complexo de inferioridade, que nós, em Portugal e na Espanha, ultrapassamos nos últimos anos. Em vez de estarem com complexo, que façam o melhor para o seu país, que utilizem as estruturas democráticas para desenvolver o seu país, nomeadamente a questão da estratificação social que é o grande problema da América Latina".
Durão Barroso, 48 anos a completar no dia 23 próximo, chefia o governo português desde abril de 2002, como líder do PSD (Partido Social Democrata), que, apesar do nome, é considerado de direita no xadrez político local.
Apesar dessa identificação, ele não economiza elogios ao presidente brasileiro, a ponto de cometer uma inconfidência: "Espero que o presidente [dos EUA, George W.] Bush me perdoe fazer esta revelação, mas ele já me disse que tem grande simpatia pessoal por ele [Lula]. Gostou muito dele. Houve uma boa química entre os dois. O que não me admira nada, porque conheço ambos e sei que são pessoas muito diretas, muito frontais".
Essa simpatia não impede, no entanto, que Durão Barroso venha com más notícias a respeito da principal reivindicação brasileira nas negociações comerciais globais e com a União Européia: "Eu acho muito difícil, falando com franqueza, haver no futuro imediato um desmantelamento da proteção agrícola na Europa, porque, em alguns países, há compromissos muito fortes em relação a esse setor".
O primeiro-ministro, formado em Direito pela Universidade de Lisboa, professor visitante da Universidade de Georgetown (EUA), falou à Folha no final da tarde da última quarta-feira, no Palacete de São Bento, a residência oficial dos governantes portugueses, que é, ele própria, uma espécie de lembrete dos laços históricos Brasil-Portugual: sua construção começou, em 1877, por ordem de Joaquim Machado Cayres, um emigrante português que fez fortuna no Brasil.
A seguir, os trechos principais da entrevista.

Folha - Portugal parece ter perdido o apetite por investimentos no Brasil. Caiu muito mais do que em outros países...
José Manuel Durão Barroso -
O que é extraordinário é que Portugal, com a sua dimensão, atingiu um pico de investimentos em uma determinada fase que não pode, evidentemente, manter. Mesmo assim, Portugal, em 2002, foi o sexto maior investidor no Brasil. Considerando que este é um país de 10 milhões de habitantes e que não é um dos mais ricos do mundo, é notável, o que mostra a confiança no Brasil. Isso é indiscutível, mas obviamente não podemos manter o nível excepcionalmente elevado para o qual contribuíram duas das maiores empresas portuguesas, a PT (Portugal Telecom) e a EDP (Eletricidade de Portugal). O que está a haver é uma mudança qualitativa interessante. Já não são só as grandes empresas que fazem investimentos. São pequenas e médias empresas que estão presentes na área do turismo.

Folha - O fato de as duas economias terem crescido pouco ou nada não prejudica esse fluxo?
Durão Barroso -
Não podemos confundir estrutura com conjuntura. Portugal está a sair, neste momento, de uma fase de ajustamento que era indispensável depois de uma expansão excessiva do consumo público e privado. Como estamos no Pacto de Estabilidade e Crescimento da Europa [que exige um déficit orçamentário não superior a 3% do Produto Interno Bruto] e queremos cumpri-lo, tivemos que adotar uma política muito rigorosa do ponto de vista orçamentário. Mas Portugal vai voltar a crescer, já este ano, de acordo com todas as previsões independentes. E eu penso que, em 2006 e 2007, teremos já níveis de crescimento muito, muito importantes. Crescer acima da média da União Européia. E o Brasil? O Brasil é a nona economia do mundo em Paridade do Poder de Compra [que mede o tamanho de uma economia de acordo com os preços e a capacidade de compra de seus habitantes]. O Brasil está à frente do Canadá e da Rússia e vai continuar assim. O Brasil estará sempre, mesmo que haja algumas dificuldades, entre as sete ou oito maiores economias do mundo. Sinceramente, a mensagem que quero passar, quer aos portugueses, quer aos brasileiros, é de confiança e de aposta estratégica de Portugal no Brasil e também do Brasil em Portugal.

Folha - Essa aposta estratégica, na questão específica do investimento, inclui, pelo menos de parte do empresariado português, o desejo de que os brasileiros invistam em Portugal. Isso tem se dado?
Durão Barroso -
Há projetos muito interessantes em curso no momento, como os da Companhia Siderúrgica Nacional que estão em fase muito avançada de preparação. É uma via muito interessante também para o Brasil, porque dá-lhe acesso a todo o mercado europeu. Quando hoje em dia se está em Portugal, não se está em um mercado de 10 milhões de habitantes, mas no maior mercado do mundo, em termos de poder de compra, a partir de 1º de maio [dia em que mais 10 países entram para a União Européia]. Sei, até porque tenho muitas ligações pessoais e familiares no Brasil, que muitos empresários brasileiros olham para Portugal como uma porta natural de entrada no mercado europeu. Não tenho a pretensão de dizer que seja a única. O Brasil tem dimensão e competência para entrar por qualquer país europeu. Não pretendo de forma alguma estar a ensinar os brasileiros o que devem fazer. Mas Portugal, à partida, oferece condições intangíveis, de boa vontade, para o investimento brasileiro. O que me desilude ainda um pouco, para falar com franqueza, é o baixíssimo nível das trocas comerciais. Como é que, apesar de toda a ligação humana, pessoal, o Brasil foi o 22º fornecedor de Portugal, e Portugal exporta para o Brasil menos de 0,5%? Não é normal.

Folha - O sr. teria alguma hipótese para explicar esse baixíssimo intercâmbio?
Durão Barroso -
Eu penso que a dificuldade pode estar, talvez, no fato de que não temos, nem em um nem em outro país, o conhecimento dos circuitos de distribuição do outro. Há, de um e do outro lado, dificuldades de natureza administrativa e burocrática. Para dar um exemplo concreto: o caso dos vinhos. No Brasil, há uma boa imagem dos vinhos portugueses e, no entanto, o vinho português ainda não passou muito daquilo que se chama o mercado português (dos portugueses ou seus descendentes no Brasil). E eu sei de amigos brasileiros que querem vinho português e nem sempre o encontram no mercado normal de distribuição.

Folha - O sr. assinou com o presidente Lula um convênio prevendo a regularização da situação dos brasileiros em Portugal e dos portugueses no Brasil, mas há queixas de morosidade na aplicação do convênio, embora se reconheça que não há má vontade. Existe algo que os dois governos possam fazer a respeito?
Durão Barroso -
O que os dois governos fizeram está feito e bem feito. Não sei se sabe que, aqui, eu próprio fui criticado por ter sido, na opinião de alguns, demasiado generoso em relação aos brasileiros e não ter dado o mesmo tratamento a outras comunidades residentes em Portugal. Mas eu expliquei isso, obviamente, pelas relações históricas especialíssimas que existem entre Portugal e Brasil. Nós, governo português, fomos criticados por termos ido longe demais quando comparado com o que fizemos em relação a outras comunidades. Com todo o respeito e amizade, o Brasil é para nós muito mais importante que a Ucrânia, apesar de, neste momento, haver muito mais ucranianos em Portugal do que brasileiros. Se há algum problema burocrático, posso assegurar que não há, de parte do governo português, nenhuma má vontade. Ao contrário, o que queremos é ajudar a resolver a situação dos brasileiros em Portugal. Disso não há a menor dúvida.

Folha - Há controvérsias sobre o relacionamento do Brasil com os Estados Unidos. O presidente Lula parece ter uma relação pessoal muito boa com o presidente Bush, mas há divergências claras, por exemplo, na Área de Livre Comércio das Américas, o Brasil tomou posição frontalmente contrária à guerra no Iraque. Há até setores muito conservadores nos Estados Unidos que começaram a falar em "eixo do mal" na América Latina, formado pelos presidentes Lula, Hugo Chávez, da Venezuela, e Néstor Kirchner, da Argentina. A Europa vê algo parecido, acha o presidente Lula anti-americano, ou isso não é um assunto?
Durão Barroso -
Não é um assunto. Não apenas Portugal, mas o conjunto da Europa, vemos com muita simpatia o presidente Lula. Sinceramente. E até entendemos que está a fazer reformas muito difíceis em um país que é uma grande economia mas que tem dificuldades que são conhecidas. Espero que o presidente Bush me perdoe fazer esta revelação mas ele já me disse que tem grande simpatia pessoal por ele. Gostou muito dele. Houve uma boa química entre os dois. O que não me admira nada, porque conheço ambos e sei que são pessoas muito diretas, muito frontais.

Folha - Teria sido ao sr. que o presidente Bush disse que o presidente Lula "é de esquerda, mas gosto muito dele"?
Durão Barroso -
Exatamente. Se não foi isso, foi muito parecido com isso o que me disse o presidente Bush do presidente Lula, porque nós falamos bastante do Brasil. Há posições diferentes [entre Brasil e Estados Unidos], mas isso não é grave. O importante é que Brasil e Estados Unidos entendam que são dois grandes países do hemisfério e que é útil que se entendam sobretudo em questões do comércio global. Temos que encontrar uma plataforma mínima. Espero, aliás, que a reunião União Européia/América Latina no México, em maio, seja uma plataforma.

Folha - Mas aí voltamos sempre ao tema do protecionismo agrícola europeu. Portugal pode fazer alguma coisa concretamente para que se materialize a prometida liberalização agrícola?
Durão Barroso -
A questão agrícola é difícil às vezes de explicar aos nossos amigos fora da Europa. Vou tentar. Portugal é hoje tudo menos um país agrícola. O produto agrícola de Portugal é 6% ou menos. E mais: as produções mediterrâneas, como azeite e vinho, não estão bem tratadas no acordo [agrícola europeu]. Agora, é preciso ver que a política agrícola comum na Europa é quase o acordo fundacional. Simplificando, os franceses aceitaram a indústria alemã, e os alemães aceitaram a agricultura francesa. Portanto, há uma rigidez muito grande. Acho muito difícil, falando com franqueza, haver no futuro imediato um desmantelamento da proteção agrícola na Europa, porque, em alguns países, há compromissos muito fortes em relação a esse setor.

Folha - A CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, parece muito mais um clube de boas intenções do que algo concreto. Imagino que o sr. vai discutir com o presidente Lula a CPLP. O que se pode fazer de concreto para transformar essa comunidade de países em algo mais do que uma afinidade puramente lingüística?
Durão Barroso -
Temos que fazer mais, mas a verdade é que a CPLP tem feito mais do que parece. São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau [antigas colônias portuguesas, hoje integrantes da CPLP] tiveram crises recentemente e quem deu para todo mundo a leitura dessas crises foi a CPLP. Quando o presidente de São Tomé e Príncipe estava na Nigéria, houve uma tentativa de golpe de Estado. A CPLP de imediato criticou esse golpe de Estado e disse que seria ilegítimo. Foi essencial para que os rebeldes recuassem e o presidente Fradique de Menezes voltasse em paz e fosse restaurada a legitimidade constitucional. No caso da Guiné Bissau, foi exatamente o contrário. Houve um golpe de Estado contra um regime que já não estava a respeitar as bases democráticas com que tinha sido eleito. E foi a CPLP que deu a leitura nas Nações Unidas de que se devia dar o benefício da dúvida e até o apoio ao novo poder da Guiné Bissau. E isso foi seguido. De maneira discreta, é certo, a CPLP tem desempenhado um papel positivo e com grande coesão. Eu gostaria que a CPLP fosse mais conhecida no Brasil.

Folha - A América Latina é uma região que vive de crise em crise, vários presidentes foram afastados não pelo clássico golpe militar, mas por manifestações de rua. Como os dois países fundadores da comunidade ibero-americana, Espanha e Portugal, vêem essa instabilidade latino-americana?
Durão Barroso -
Vamos começar com um exemplo positivo que é o Brasil. A transição no Brasil foi notável. De acordo com a teoria da democracia, o regime democrático está plenamente institucionalizado quando há várias mudanças de orientação política, e isso não põe em causa as regras institucionais básicas do regime. E foi o que o Brasil conseguiu. O presidente Lula deu um grande exemplo, ao ter perdido várias vezes e, mesmo assim, ter continuado a disputar e finalmente vencer, acabando com aquela idéia de que havia um partido que podia ser muito importante mas nunca chegaria ao poder. Isso é muito importante para alguns esquerdistas que há na América Latina e que se consideravam fora do sistema. E alguns andam ainda a pôr bombas em vez de procurar chegar ao poder pelo sufrágio universal. É notável quando vemos um partido como o PT, com ideologia de esquerda, pelo menos foi assim que nasceu, chegar ao poder pela via democrática. Infelizmente, em alguns países latino-americanos, temos partidos de esquerda que se refugiam em atitudes marginais contra a democracia. Vou falar com franqueza. Eu gosto muito da América Latina, mas a América Latina tem um problema que, felizmente, Espanha e Portugal já ultrapassaram. O problema é que as elites da América Latina, muitas vezes, têm ainda um complexo de inferioridade, que nós em Portugal e na Espanha, ultrapassamos nos últimos anos. Os espanhóis e portugueses, até pouco tempo, consideravam-se europeus de segunda. E felizmente a nossa integração na União Européia mostrou-nos que éramos capazes, tão bons ou melhores [do que os demais europeus] em muitos aspectos. Em algumas elites latino-americanas, há um complexo em relação aos Estados Unidos, uma espécie de inveja. Em vez de estarem com complexo, que façam o melhor para o seu país, que usem as estruturas democráticas para desenvolver o seu país, nomeadamente a questão da estratificação social que é o grande problema da América Latina. Se eu fosse latino-americano, a primeira coisa que faria para desenvolver o meu país seria procurar reduzir as desigualdades sociais, mas não com demagogia populista, porque o populismo é uma forma de estupidez absoluta, mas com programas racionais que procurassem integrar o país no comércio global, na confiança global. O que verifico muitas vezes é que, nas elites latino-americanas, há uma racionalização do medo e da impotência, que se transforma numa espécie de ressentimento contra a globalização, ressentimento contra os americanos, que, muitas vezes, é uma desculpa para as próprias elites porem seu dinheiro em Miami.


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