São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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NO PLANALTO

Criado sob Lula, Paes ganha silhueta de "Mães"

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Na semana passada, Brasília levou à internet o formulário do Imposto de Renda de 2004. Recomeçou o velho jogo de esconde-esconde. O caso descrito abaixo, convém alertar, deixará irritados os leitores que, por assalariados, não têm como esconder a renda.
Não quer estragar o domingo? Então vá ler outra coisa. Decidindo avançar ao próximo parágrafo, não diga depois que não foi avisado. Por partes:
1) Hemfibra Indústria e Comércio Ltda., empresa do Rio Grande do Norte, opera no ramo de saneamento. Faz negócios nas regiões Norte e Nordeste. Deve ao fisco R$ 5,8 milhões. No ano passado, aderiu ao Paes, um "programa especial" aprovado pelo Congresso e sancionado por Lula;
2) o Paes (lei 10.684) foi concebido para que sonegadores contumazes pudessem abrir crediários na Receita. Dívidas tributárias milionárias foram parceladas em prestações calculadas com base no faturamento bruto do devedor;
3) nos computadores do governo, a Hemfibra é grande devedora. Foi aceita no Paes, porém, como empresa de pequeno porte. Recolhe mensalmente aos cofres públicos R$ 200,00;
4) parcelada a dívida, descobriu-se que há na praça duas empresas homônimas: a Hemfibra Indústria e Comércio, envolta em dívidas, e a Hemfibra Tecnologia em Saneamento, pujante e lucrativa;
5) uma Hemfibra é, por assim dizer, irmã gêmea da outra. Ambas lidam com saneamento. Os sócios possuem vínculos de parentesco. As sedes estão separadas por uma distância de 700 metros;
6) fundada em 1984, a Hemfibra micada transferiu à Hemfibra altaneira, aberta em 2001, os melhores técnicos, as patentes de equipamentos e a tecnologia de saneamento. Preservou as dívidas;
7) para a Receita Federal, as duas Hemfibras são uma só. A esperteza do desmembramento visa fraudar a máquina coletora de tributos;
8) manuseando a calculadora, a Receita concluiu que, considerados os resultados declarados das duas Hemfibras, o recolhimento tributário deveria ser não de R$ 200,00, mas de R$ 29,6 mil mensais;
9) convocada ao guichê, a "nova" Hemfibra esperneou. Alegou que nada tem a ver com a velha. Recusou-se a compartilhar as dívidas;
10) a tese de que as duas Hemfibras são coisas distintas não resiste a um passeio pela internet. Em visita à rede mundial de computadores (www.hemfibra.com.br), o repórter constatou que a empresa temporã possui o mesmo DNA da anciã;
11) a Hemfibra de 1984 tem como sócio-gerente Raimundo Gonçalves Diniz. No contrato social da Hemfibra de 2001, ele dá lugar a dois filhos: Manoel Gonçalves Diniz Neto e Marcela Frazão Arruda Diniz;
12) embora ausente na composição societária, o patriarca Gonçalves Diniz figura na internet como autoridade máxima da "nova" Hemfibra. Ouvido, ele disse que não dirige, apenas "presta consultoria" à firma dos filhos. Mas não é só;
13) a Hemfibra lucrativa informa na internet que seu "corpo técnico é oriundo da outra empresa", a Hemfibra encalacrada, "de quem foram adquiridas as patentes, a marca e o acervo técnico";
14) "Assim", prossegue o texto da internet, "mais que uma simples compra, onde se transferem recursos estratégicos [...], a Hemfibra Indústria e Comércio transfere à Hemfibra Tecnologia em Saneamento toda uma história e experiência de vida [...]". Só não transfere as dívidas;
15) acossada pelo fisco, a "nova" Hemfibra foi ao Judiciário. Sensibilizado por um competente rosário de argumentos desfiados pela Procuradoria da Fazenda Nacional, a quem cabe defender o fisco, o juiz deu razão ao Estado;
16) derrotada, a empresa foi à segunda instância. Reivindicou a concessão de liminar para brecar as pretensões da Receita. Perdeu de novo. Ingressou com novo recurso, ainda pendente de julgamento;
17) o advogado da "nova" Hemfibra, Heriberto Escolástico Bezerra Jr., diz que, se amargar nova derrota judicial, levará o caso aos tribunais superiores de Brasília;
18) Bezerra Jr. argumenta que o fisco negou ao seu cliente o "amplo direito de defesa assegurado pela Constituição, ferindo o processo legal". O advogado reconhece que os dados registrados pela Hemfibra em sua página na internet não favorecem a defesa. Alega, porém, que decorrem de "um erro", que será corrigido;
19) o caso da Hemfibra está longe de ser isolado. Desmembramentos de empresas com aparência fraudulenta repetem-se às centenas em todo país. Somam-se a outros tipos de irregularidades;
20) em reportagem de 1º de fevereiro, a Folha revelou três dezenas de parcelamentos tributários suspeitos. Parcelaram-se milionários passivos tributários em até 8.900 séculos. Foram feitos com base no Refis, a mamata tributária que, editada sob FHC, em 2000, antecedeu o Paes;
21) descobre-se agora que, assim como o Refis de FHC, o Paes vai assumindo, aos poucos, o perfil de "Mães", num processo de metamorfose que desfigura os seus propósitos.
O repórter pede desculpas ao contribuinte em dia com o fisco por ter-lhe vazado os olhos com informações tão desagradáveis. Bom domingo.



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