São Paulo, quarta-feira, 07 de abril de 2004

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ELIO GASPARI

"Pôr pra trabalhar gente que nunca trabalhou"

Lula começou seu governo cometendo um erro crasso: fundiu numa só pessoa os poderes da coordenação política e administrativa da Presidência. Teve a falta de sorte de juntar essas atribuições no comissário José Dirceu, que gostou da idéia da fusão de ventilador com melancia. A sorte de Lula foi tão pouca que muita gente boa acreditou no surgimento dessa figura do gerente, primeiro-ministro ou mesmo "técnico".
José Dirceu foi um excelente comissário. Inigualável para massacrar dissidentes de seu partido e centralizar nomeações, verbas e acordos. Tudo aquilo de que grandes políticos como Getúlio Vargas, JK e Franco Montoro tinham horror.
Passado mais de um ano dos superpoderes do comissário Dirceu, cabe uma pergunta: qual foi o poste colocado de pé pela sua temida figura? Argumenta-se que ele tem na cabeça a memória do governo e do partido. O computador no qual foi escrito este artigo tem uma memória incrível (10 gigabytes), mas, infelizmente, não é capaz de escrever meia frase. Dirceu consumiu um ano da existência do governo petista provando a Brasília que era um homem muito poderoso. Conseguiu. Como no poema de Ascenso Ferreira, "para nada".
Depois da reforma ministerial, caberia ao poderoso comissário tocar o governo. Até hoje, tocou entrevistas, todas muito boas, nas quais não se encontra vestígio de discussão de políticas públicas. Se, em vez de ameaçar pessoas ou instituições, o comissário ameaçasse problemas, o governo melhoraria. Por exemplo: Dirceu pode ameaçar a eternização das favelas. Basta batalhar pela regularização de 50 mil lotes urbanos a cada ano. (Sem fixar meta, Lula prometeu cuidar disso.) Se quiser, chama os prefeitos das grandes cidades para discutir o que o governo federal pode fazer para permitir a criação de um vale-transporte para desempregados. (Lula prometeu 10 milhões de empregos. Como produziu desemprego, pode pelo menos ajudar a turma a procurar serviço. É provável que a Grande São Paulo já tenha chegado aos 2 milhões de desempregados. O município tem 1 milhão.) E as cotas para negros e pobres nas universidades públicas? Daqui a pouco Dirceu poderá convidar os amigos para o coquetel comemorativo do primeiro semestre da chegada do assunto à sua mesa.
O professor Delfim Netto conta uma história mais ou menos assim:
- Seja qual for a tua ideologia, o teu programa de governo e a linha política da tua equipe, na manhã seguinte à posse, você precisa abrir a quitanda. Vai entrar uma velhinha, com uma nota de R$ 10 na mão, querendo um quilo de berinjelas. Você precisa ter beringelas e troco para a velhinha.
A velhinha que entrou na quitanda de Lula no dia 2 de janeiro de 2003 ainda está esperando o troco. Seu marido perdeu o emprego e seu filho foi assaltado duas vezes. Parece que Dirceu já conseguiu as beringelas, mas está reunido com o comissário Luiz Gushiken para decidir o troco.
Se Lula quer que o seu governo cumpra uma agenda positiva, precisa transmitir no sistema de som do Planalto os inesquecíveis versos de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra:
"Vou pedir ao meu Babalorixá
Pra fazer uma oração pra Xangô
Pra pôr pra trabalhar gente que nunca trabalhou".


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