São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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NO PLANALTO

Lula, o troco e o bom ladrão de Vieira

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Deu-se há dez dias. Lula falava à Rádio Record. A alturas tantas, perguntaram-lhe sobre a suposta mesada de R$ 40 mil que empresas de ônibus vinham pingando no embornal de agentes da prefeitura petista de Santo André.
"Eu fico até brincando", respondeu, "que isso aí é um troco no processo de corrupção no Brasil, em que se fala de milhões e milhões (...)".
Em tempo de são João, brincar com querosene à beira da fogueira não é coisa que o bom senso recomenda. De todo modo, é bom que Lula tenha circunscrito o comentário ao campo da galhofa. Do contrário, poder-se-ia presumir que tivesse desejado dizer algo assim: ainda que seja verdadeira, a acusação é uma honra para o PT, que, ao roubar, rouba pouco.
Lula fazia pilhéria, não há dúvida. Fosse Adão um petista militante, decerto ainda estaríamos no Éden, eis a tese escondida atrás do chiste. Que crime, afinal, cometeu o primeiro homem? Roubou uma maçã. Uma reles maçã. A mãe, por assim dizer, de todos os trocos.
O gracejo de Lula ganha ossatura antropológica quando vista sob a ótica de um clássico: o "Sermão do Bom Ladrão", do padre Antônio Vieira. Deus pôs Adão no paraíso, anotou Vieira, com poder sobre todos os viventes, como senhor absoluto de todas as coisas criadas. Exceção feita a uma árvore. Eis que, com a cumplicidade da mulher, Adão provou do único fruto que não lhe pertencia.
"E quem foi que pagou o furto?", pergunta Vieira. Ninguém menos que Deus, materializado na pele de Jesus. Condenado à cruz, pregado entre ladrões, ofereceu um exemplo aos príncipes. Um sinal de que são, também eles, responsáveis pelo roubo praticado por seus ministros.
Ao sobrepor a imagem do "troco" à dos "milhões", Lula como que contrapôs a Santo André petista à Brasília tucana. Sem querer, evocou outro trecho do "Sermão do Bom Ladrão".
Conta Vieira que, navegando em poderosa armada, estava Alexandre Magno a conquistar a Índia quando trouxeram à sua presença um pirata dado a roubar os pescadores. Alexandre repreendeu-o. Destemido, o pirata replicou: "Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?".
Citando Lucius Annaeus Seneca, um austero filósofo e dramaturgo de origem espanhola, que serviu em Roma como conselheiro de Nero, Vieira lapida o raciocínio: se o rei da Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, todos -rei, ladrão e pirata- merecem o mesmo nome.
Assim, o furto de uma bolsa, a extorsão de empresas municipais e a pilhagem de autarquias federais são irrupções de um mesmo fenômeno. O tamanho do furto importa pouco. De troco em troco também se chega ao milhão. E quem furta e se desonra no pouco mais facilmente o fará no muito, já dizia o Cristo.
A bordo de sua armada brasiliense, que inclui navios avariados com rombos do tamanho de uma Sudam, o grão-tucanato diverte-se com o contorcionismo vocabular a que se vê submetido o PT. Tudo graças às incursões da barca de Santo André pelo encapelado mar da suspeita. Riem-se tanto os tucanos que se esquecem de alinhavar explicações para a súbita conversão da Polícia Federal em birô eleitoral.
O PT sempre se acreditou empenhado numa guerra do bem contra o mal. Segundo o padrão petista de exigência ética, quando se começava a duvidar de alguém, era sinal de que já não havia a menor dúvida. O partido notabilizou-se por cobrar dos adversários um comportamento de mulher de César. Soa esquisito que queira para si tratamento diverso. Não terá.
Imagine-se os pulos que daria o PT se o irmão de um prefeito tucano comparecesse ao Ministério Público para denunciar esquema municipal de achaques. Avalie-se o que diria José Dirceu se o sujeito revelasse que parte da grana, entregue a José Aníbal, houvesse engraxado o caixa de campanha de José Serra. Faça-se uma idéia dos vitupérios que pingariam dos lábios de Lula se Serra ousasse qualificar o roubo como "um troco".
Volte-se, por oportuno, a Vieira. Diz o sábio padre que são companheiros dos ladrões os que os dissimulam; são companheiros dos ladrões os que os consentem; são companheiros dos ladrões os que lhes dão postos e poderes; são companheiros dos ladrões os que os defendem; são companheiros dos ladrões os que hão de acompanhá-los ao inferno.
O PT merece melhor sorte. Que os indícios colecionados em Santo André virem pó no curso da apuração. Ou o que Lula diz "brincando" pode acabar inspirando a criação de uma inusitada escala ética. A escala São Dimas, em homenagem ao bom ladrão do Evangelho.
Quem furtasse com parcimônia na esfera pública -de R$ 40 mil em R$ 40 mil- estaria livre da sanha petista. Isso em nível municipal. Haveria tetos diferenciados para o bom ladrão estadual e para o federal. E Duda Mendonça teria de ajustar o lema da campanha petista. Em vez de "por um Brasil decente, Lula presidente", algo como "entre o troco e o milhão, vote no mais brincalhão".



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