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Otavio Frias Filho
Brasil inzoneiro
POUCAS VEZES o surrado dito marxista
segundo o qual a
história acontece duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como
farsa, foi tão verdadeiro
como agora. Guardadas as
proporções das duas personagens, o que está havendo é uma "getulização"
da imagem de Lula.
O lema da campanha
presidencial é "Lula de novo, com a força do povo".
Ou seja, o pai dos pobres (e
ao mesmo tempo mãe dos
banqueiros) paira acima
das classes, das regiões,
dos partidos, reconduzido
nos "braços do povo" como o Getúlio de 1950.
Fora o passado ditatorial e a envergadura histórica de Getúlio, as semelhanças são notórias. Ambos compraram a gratidão
popular via concessões sociais. Ambos tiveram seus
governos associados a corrupção e aparelhamento
do Estado. Ambos se disseram vítimas de um complô de elites (Getúlio, ao
menos na fase final, com
alguma razão).
É a expressão política
daquele "Brasil inzoneiro"
(mentiroso, malandro,
sonso), da canção de Ary
Barroso. O governante
exitoso é sempre o que dilui suas posições, alicia
apoios à direita e à esquerda, muda com as circunstâncias, seduz adversários,
desconversa e concilia.
Também a "frustração"
com o governo Lula se inscreve numa sólida tradição brasileira: a das transições mais aparentes, de fachada, do que reais. Independência, República,
1930, 1945, 1985, todas as
rupturas foram antes
acordos em que a ordem
velha sobreviveu à nova,
dissolvendo-se nela.
Numa campanha política anódina, sem novidade,
um livro clássico pode oferecer esclarecimento.
Mais exatamente, uma intuição escondida nas páginas finais de "Raízes do
Brasil" (1936), do historiador Sérgio Buarque de Holanda, que vale citar.
"A grande revolução
brasileira não é um fato
que se registrasse num
instante preciso; é antes
um processo demorado e
que vem durando pelo
menos há três quartos de
século. (...) Estaríamos vivendo assim entre dois
mundos: um definitivamente morto e outro que
luta por vir à luz."
O historiador falava da
revolução burguesa no
Brasil, aquele processo
que estabelece a universalidade dos direitos e a impessoalidade da lei. Processo histórico que tantas
décadas depois continua
em curso, incompleto,
gradual, exasperante.
Mas existe agora uma
diferença importante. O
mundo não está mais dividido entre duas visões antagônicas que reclamavam uma tomada de partido. Foi-se a era das revoluções, a grande política está
extinta, a vida pessoal adquiriu um relevo cada vez
maior e a mentalidade
pragmática impera em todos os sentidos.
Ou seja, nas mais retrógradas tradições da política brasileira desponta um
surpreendente elemento
contemporâneo: consenso em vez de polaridade
política, melhoras "incrementais" em vez de soluções drásticas, "avanço"
em vez de revolução.
OTAVIO FRIAS FILHO é diretor de
Redação da Folha
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