São Paulo, quinta-feira, 07 de setembro de 2006

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Otavio Frias Filho

Brasil inzoneiro

POUCAS VEZES o surrado dito marxista segundo o qual a história acontece duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa, foi tão verdadeiro como agora. Guardadas as proporções das duas personagens, o que está havendo é uma "getulização" da imagem de Lula.
O lema da campanha presidencial é "Lula de novo, com a força do povo".
Ou seja, o pai dos pobres (e ao mesmo tempo mãe dos banqueiros) paira acima das classes, das regiões, dos partidos, reconduzido nos "braços do povo" como o Getúlio de 1950.
Fora o passado ditatorial e a envergadura histórica de Getúlio, as semelhanças são notórias. Ambos compraram a gratidão popular via concessões sociais. Ambos tiveram seus governos associados a corrupção e aparelhamento do Estado. Ambos se disseram vítimas de um complô de elites (Getúlio, ao menos na fase final, com alguma razão).
É a expressão política daquele "Brasil inzoneiro" (mentiroso, malandro, sonso), da canção de Ary Barroso. O governante exitoso é sempre o que dilui suas posições, alicia apoios à direita e à esquerda, muda com as circunstâncias, seduz adversários, desconversa e concilia.
Também a "frustração" com o governo Lula se inscreve numa sólida tradição brasileira: a das transições mais aparentes, de fachada, do que reais. Independência, República, 1930, 1945, 1985, todas as rupturas foram antes acordos em que a ordem velha sobreviveu à nova, dissolvendo-se nela.
Numa campanha política anódina, sem novidade, um livro clássico pode oferecer esclarecimento. Mais exatamente, uma intuição escondida nas páginas finais de "Raízes do Brasil" (1936), do historiador Sérgio Buarque de Holanda, que vale citar.
"A grande revolução brasileira não é um fato que se registrasse num instante preciso; é antes um processo demorado e que vem durando pelo menos há três quartos de século. (...) Estaríamos vivendo assim entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz."
O historiador falava da revolução burguesa no Brasil, aquele processo que estabelece a universalidade dos direitos e a impessoalidade da lei. Processo histórico que tantas décadas depois continua em curso, incompleto, gradual, exasperante.
Mas existe agora uma diferença importante. O mundo não está mais dividido entre duas visões antagônicas que reclamavam uma tomada de partido. Foi-se a era das revoluções, a grande política está extinta, a vida pessoal adquiriu um relevo cada vez maior e a mentalidade pragmática impera em todos os sentidos.
Ou seja, nas mais retrógradas tradições da política brasileira desponta um surpreendente elemento contemporâneo: consenso em vez de polaridade política, melhoras "incrementais" em vez de soluções drásticas, "avanço" em vez de revolução.


OTAVIO FRIAS FILHO é diretor de Redação da Folha

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