São Paulo, quarta-feira, 07 de novembro de 2001

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ELIO GASPARI

A tortura na seção de negócios

Nenhuma torre de Nova York marcou tanto os viajantes que chegavam ao seu porto. Desde 1848, quando foi erguida, até o início do século 20, quando foi abafada pelos arranha-céus, a torre da Trinity Church foi a primeira visão da cidade. Tem a altura de um prédio de 12 andares. Ninharia diante do vizinho da frente, com mais de 50, e das duas torres que ficavam a uns 200 metros de seus fundos, cada uma com 110 andares.
Quando a primeira torre do World Trade Center foi atingida, umas cem pessoas entraram na Trinity Church e puseram-se a rezar. Meia hora depois veio o segundo avião, e a igreja foi evacuada. O porteiro Sugar, 56 anos e 20 de serviço naquela entrada, reabriu a velha igreja negra no domingo passado. Lembrou-se das pessoas que se sentaram nos seus bancos na manhã de 11 de setembro: "Eu acho que vieram rezar. Não entrariam aqui só por abrigo".
A Trinity Church passou incólume pela desgraça. Já era tempo. Durante a guerra com os ingleses, pegou fogo. Mais tarde, teve de ser demolida. Foi a igreja de George Washington e a primeira a educar negros, no século 18. Hoje é uma das paróquias mais ricas do mundo. Tem 16 edifícios no pedaço, todos de pé. Tornou-se o centro de uma rede de organizações filantrópicas.
A "igreja negra de Wall Street" é cercada por um pequeno cemitério e nele está o túmulo de Alexander Hamilton, o primeiro secretário do Tesouro dos Estados Unidos, morto aos 47 anos num duelo. Hoje ele é o jovem simpático estampado na nota de US$ 10. Ao seu tempo, foi o arquiteto da aliança entre os mercadores de Nova York e a construção de um novo país.
Na segunda-feira, a Trinity Church retomou seu programa de concertos vespertinos. De preto, o pianista Frank Ponzio tocou "Eles não podem tirar aquilo de mim", de George Gershwin (nascido no Brooklin), e, em seguida, "Wave", de Antonio Carlos Jobim (morto em Nova York). No dia 11 de setembro, Ponzio estava dando aulas de piano na sua casa, na Broadway com a rua 73, quando viu o mundo virar de cabeça para baixo.
Dois guindastes parados no meio da nave ensinam que a vida na Trinity Church não voltou ao normal. Eles serão usados para limpar os tubos do órgão. O cheiro também ensina que há algo de estranho por perto. Um cheiro acre, fraco, parecido com aquele que sai das fogueiras extintas. É o cheiro das torres. Dizem que já foi diferente. Há pessoas capazes de senti-lo a dois quilômetros do chamado "ponto zero".
Passaram as torres, passará a guerra, e a velha "igreja negra de Wall Street" continuará lá, como símbolo de uma elite de comerciantes que, em menos de três séculos, transformou um porto de mercadores e corsários no centro do mundo. (O pirata William Kidd foi um dos benfeitores da igreja.) Quando um atacadista de diamantes africanos namorava a viúva do presidente John Kennedy, Trinity recebia o bispo negro sul-africano Desmond Tutu. É essa capacidade que a elite americana tem de se diferenciar que parece estar queimando nos escombros das torres.
Os americanos estão em guerra. Estão em guerra porque querem e porque seu presidente lhes disse que em guerra estão. Uma guerra difícil, sem inimigo territorial e sem aliados. (Tony Blair é candidato a sócio enquanto as pesquisas estiverem boas.) Seu liberais estão encurralados, mudos, fazendo papéis horríveis. O "The New York Times" publicou uma reportagem sobre a polêmica em torno da validade da tortura como método de investigação no caderno de negócios. Nos anos 40, algum editor astucioso teve idéia parecida e mandou colocar numa página interna a notícia da denúncia de que havia na Alemanha uma rede de campos de concentração para matar judeus. Como bem lembrou o historiador Walter Lacqueur, ou era mentira -e não deviam ter publicado- ou era verdade -e não deveriam ter escondido.
Tortura na seção de negócios é coisa jamais vista. A "velha senhora grisalha", doce apelido que os nova-iorquinos deram ao "Times", sempre poderá dizer que a reportagem tratava da maneira como o assunto estava sendo apresentado na imprensa. Terá razão, desde que apareça com o cabelo pintado de verde-camuflagem.
O fundamentalismo taleban é conhecido e não custa muito repudiá-lo. O fundamentalismo americano é outra coisa. Primeiro, é desconhecido. Depois, é insustentável. A cada período de fundamentalismo ocorrido na história americana corresponde um período de humilde arrependimento. Aquela elite de comerciantes virou o que virou porque soube tirar proveito da diversidade. A "igreja negra de Wall Street", por exemplo, foi construída com doações de todos os credos, inclusive de descendentes de judeus expulsos do Brasil pela ortodoxia católica.


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