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ELIO GASPARI
A tortura na seção
de negócios
Nenhuma torre de Nova
York marcou tanto os viajantes que chegavam ao seu
porto. Desde 1848, quando foi
erguida, até o início do século
20, quando foi abafada pelos
arranha-céus, a torre da Trinity Church foi a primeira visão da cidade. Tem a altura de
um prédio de 12 andares. Ninharia diante do vizinho da
frente, com mais de 50, e das
duas torres que ficavam a uns
200 metros de seus fundos, cada uma com 110 andares.
Quando a primeira torre do
World Trade Center foi atingida, umas cem pessoas entraram na Trinity Church e puseram-se a rezar. Meia hora depois veio o segundo avião, e a
igreja foi evacuada. O porteiro
Sugar, 56 anos e 20 de serviço
naquela entrada, reabriu a velha igreja negra no domingo
passado. Lembrou-se das pessoas que se sentaram nos seus
bancos na manhã de 11 de setembro: "Eu acho que vieram
rezar. Não entrariam aqui só
por abrigo".
A Trinity Church passou incólume pela desgraça. Já era
tempo. Durante a guerra com
os ingleses, pegou fogo. Mais
tarde, teve de ser demolida.
Foi a igreja de George Washington e a primeira a educar
negros, no século 18. Hoje é
uma das paróquias mais ricas
do mundo. Tem 16 edifícios no
pedaço, todos de pé. Tornou-se
o centro de uma rede de organizações filantrópicas.
A "igreja negra de Wall
Street" é cercada por um pequeno cemitério e nele está o
túmulo de Alexander Hamilton, o primeiro secretário do
Tesouro dos Estados Unidos,
morto aos 47 anos num duelo.
Hoje ele é o jovem simpático
estampado na nota de US$ 10.
Ao seu tempo, foi o arquiteto
da aliança entre os mercadores de Nova York e a construção de um novo país.
Na segunda-feira, a Trinity
Church retomou seu programa de concertos vespertinos.
De preto, o pianista Frank
Ponzio tocou "Eles não podem
tirar aquilo de mim", de George Gershwin (nascido no Brooklin), e, em seguida, "Wave",
de Antonio Carlos Jobim
(morto em Nova York). No dia
11 de setembro, Ponzio estava
dando aulas de piano na sua
casa, na Broadway com a rua
73, quando viu o mundo virar
de cabeça para baixo.
Dois guindastes parados no
meio da nave ensinam que a
vida na Trinity Church não
voltou ao normal. Eles serão
usados para limpar os tubos
do órgão. O cheiro também
ensina que há algo de estranho
por perto. Um cheiro acre, fraco, parecido com aquele que
sai das fogueiras extintas. É o
cheiro das torres. Dizem que já
foi diferente. Há pessoas capazes de senti-lo a dois quilômetros do chamado "ponto zero".
Passaram as torres, passará
a guerra, e a velha "igreja negra de Wall Street" continuará
lá, como símbolo de uma elite
de comerciantes que, em menos de três séculos, transformou um porto de mercadores
e corsários no centro do mundo. (O pirata William Kidd foi
um dos benfeitores da igreja.)
Quando um atacadista de diamantes africanos namorava a
viúva do presidente John Kennedy, Trinity recebia o bispo
negro sul-africano Desmond
Tutu. É essa capacidade que a
elite americana tem de se diferenciar que parece estar queimando nos escombros das torres.
Os americanos estão em
guerra. Estão em guerra porque querem e porque seu presidente lhes disse que em guerra estão. Uma guerra difícil,
sem inimigo territorial e sem
aliados. (Tony Blair é candidato a sócio enquanto as pesquisas estiverem boas.) Seu liberais estão encurralados, mudos, fazendo papéis horríveis.
O "The New York Times" publicou uma reportagem sobre
a polêmica em torno da validade da tortura como método
de investigação no caderno de
negócios. Nos anos 40, algum
editor astucioso teve idéia parecida e mandou colocar numa página interna a notícia
da denúncia de que havia na
Alemanha uma rede de campos de concentração para matar judeus. Como bem lembrou o historiador Walter Lacqueur, ou era mentira -e não
deviam ter publicado- ou era
verdade -e não deveriam ter
escondido.
Tortura na seção de negócios
é coisa jamais vista. A "velha
senhora grisalha", doce apelido que os nova-iorquinos deram ao "Times", sempre poderá dizer que a reportagem tratava da maneira como o assunto estava sendo apresentado na imprensa. Terá razão,
desde que apareça com o cabelo pintado de verde-camuflagem.
O fundamentalismo taleban
é conhecido e não custa muito
repudiá-lo. O fundamentalismo americano é outra coisa.
Primeiro, é desconhecido. Depois, é insustentável. A cada
período de fundamentalismo
ocorrido na história americana corresponde um período de
humilde arrependimento.
Aquela elite de comerciantes
virou o que virou porque soube tirar proveito da diversidade. A "igreja negra de Wall
Street", por exemplo, foi construída com doações de todos os
credos, inclusive de descendentes de judeus expulsos do
Brasil pela ortodoxia católica.
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