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ENTREVISTA DA 2ª
Para o assessor de Marta, que vai coordenar comissão, globalização deu maior dimensão às diferenças no país
Grandes empresas dominam política, diz Milton Santos
CÉLIA CHAIM
DA REPORTAGEM LOCAL
O geógrafo Milton Santos, 74
anos, é um dos poucos brasileiros
cuja especialidade é pensar com
inteligência. Pensar o Brasil e suas
mazelas; pensar o brasileiro e suas
carências. Ele agora faz parte de
uma comissão que promove uma
inovação na vida pública brasileira. Independente e sem compromisso com as idéias do governo, a
comissão vai estudar os resultados até agora obtidos pela globalização e seu impacto em São Paulo. Quando tudo estiver pronto, a
comissão entrega o trabalho para
a prefeita Marta Suplicy.
Milton Santos está mais magro
e, por conta de um tratamento de
saúde, faz várias vezes ao dia o
que os baianos, como ele, adoram
fazer: merendar, panetone com
suco, por exemplo.
E está cada vez mais perspicaz.
A cabeça quase branca de Milton
Santos, que viveu na França por
muitos anos voluntária e involuntariamente, o leva à condição de
um dos poucos negros intelectuais que o Brasil permitiu ascender. Na marra. Ele fez o primário
em casa, com os pais, professores.
Era bom aluno em matemática,
mas foi demovido da idéia de estudar na Escola Politécnica por
sua família, que sabia que os negros não eram bem recebidos na
instituição.
Foi assim que o Brasil ganhou o
geógrafo Milton Santos. O mesmo Brasil que, ele acredita, sorrateiramente começa a tomar consciência de que a convivência entre
dois países dentro de um mesmo
território é inviável. "A gente conversa com o tipo mais humilde,
mais pobre, e toda a gente tem
consciência de que a educação é
essencial para seus filhos", diz.
Milton Santos é o típico aposentado brasileiro. Continua trabalhando. Dá aulas nos cursos de
mestrado e doutorado da Universidade de São Paulo e lidera um
grupo de pesquisas que reúne 20
estudiosos. Nos próximos dias,
lança o livro "O Brasil: território e
sociedade no início do século 21",
da Editora Record, assinado com
Maria Laura Silveira e vários de
seus alunos.
Folha - O que a comissão vai estudar?
Milton Santos - Tem dois aspectos principais: a própria organização da cidade, como ela é, como é
a situação, qual a sua relação com
o processo de globalização e a outra é a relação da cidade com a federação. Somos um grupo de pessoas vindas de diferentes horizontes intelectuais. Mas ainda não há
nada a falar. É um plano.
Folha - O que o senhor pensa sobre a inserção do Brasil no movimento de globalização?
Santos - A maneira como o país
se deixou inserir nesse processo,
de forma um pouco atabalhoada,
conduz a uma grande desordem
no meu modo de ver. Na verdade,
sempre houve dois brasis. O que a
globalização fez foi dar a esse fenômeno uma dimensão maior
porque ela conduz à exclusão.
Folha - O que o senhor pensa sobre o mercado global?
Santos - Não existe isso. O que
existe são empresas com vocação
planetária, mas que jamais se realizam completamente. Não há um
mercado global e é por isso também que não há uma regulação
global. A prova disso é que as crises estouram umas atrás das outras, e aí se buscam explicações
parciais, quando a explicação é o
próprio sistema -a globalização,
que é uma provedora permanente
de crises.
Folha - E os avanços tecnológicos,
a facilidade de comunicação?
Santos - A globalização é mais
um momento da condução da
história da humanidade e um momento muito importante porque
é como se os sonhos que a humanidade acalentou durante séculos
estivessem a ponto de se realizar.
Nós alcançamos uma aceleração
das técnicas, uma aceleração das
relações interpessoais, uma aceleração na produção de conhecimento. É um momento que privilegia a nossa geração e que resulta,
de um lado, nesse domínio sobre
as forças naturais e, de outro, no
uso político dos recursos técnicos
disponíveis.
Folha - É aí que começam os problemas?
Santos - Exatamente. A política
deixou de ser feita por institutos,
instituições, governos e passou a
ser feita por grandes empresas. É
evidente que ainda há governos, é
evidente que organismos internacionais buscam criar uma moralidade internacional, é evidente
que a globalização permitiu que
se criasse no mundo inteiro uma
enorme possibilidade de movimentos independentes, que discutem e defendem amplas causas
humanitárias. Mas o poder sobre
a produção, sobre o trabalho e a
vida das pessoas é potencializado
nas mãos de um número de empresas cada vez menor. Esse é que
é o problema. E aí essa globalização que deveria ser democrática
entre aspas, com uma produção
da humanidade igualitária, acaba
sendo exatamente contrário. Alguns países têm os meios de comandar e os outros ficam na periferia.
Folha - É o caso do Brasil, por
exemplo?
Santos - A globalização, tal como ela se relacionou com o Brasil,
criou uma seletividade maior ainda no uso dos recursos públicos
que se tornaram muito mais
orientados para a vida produtiva
do que para a problemática social.
A educação, por exemplo, é um
dado da problemática social. É
evidente que o ministro da Educação pode se vangloriar de haver
aumentado o número de matrículas, mas a questão não é estatística e sim que tipo de educação se
oferece e para quê? O que parece
existir no Brasil é uma educação
em duas ou três velocidades diferentes: segundo, o lugar que estou
na sociedade posso receber uma
educação qualitativamente boa
ou qualitativamente ruim, e aí as
minhas oportunidades no mundo
do conhecimento são condicionadas por essa formação.
Folha - O que o senhor acha da ênfase ao estudo técnico?
Santos - Há um entendimento
da coisa técnica que me parece
equivocado no trabalho do ministério da Educação. É a valorização
da técnica em si e não do fenômeno técnico. Isso conduz a dar ênfase ao treinamento, que não é
educação. O treinamento consiste
em preparar rapidamente a mão
de obra para tarefas que às vezes
deixam de ter razão de ser, enquanto que a educação é algo que
instrumentaliza o homem para
ser mais e melhor cidadão, para
entender mais e melhor o mundo,
para se tornar um ser humano na
sua plenitude.
Nas condições atuais há uma insistência nesse aspecto instrumental da educação, em detrimento do aspecto propriamente
formativo e isso se vê na proliferação de cursos noturnos, os cursos
por correspondência, os telecursos, que são formas simplórias
que podem enganar as pessoas
durante algum tempo, mas não
facilitam a incorporação a uma vida plena, que é o objetivo da educação.
Folha - Assim como a educação, a
saúde, habitação...
Santos - Há uma certa anuência
no sentido de que certos problemas somente podem ser enfocados em conjunto e a partir de uma
idéia de futuro, um projeto de civilização. O Brasil nunca teve um
cidadão brasileiro mesmo. Algumas pessoas recebem tratamentos privilegiados e as outras são
coisas.
Folha - O senhor não viu essa
perspectiva mais próxima quando
Fernando Henrique Cardoso assumiu a presidência?
Santos - Não porque nos anos
anteriores ao processo de sua eleição eu não estava aqui, não estava
contaminado pelas simpatias pessoais que o presidente inspira. Raras são as pessoas tão sedutoras
quanto ele. Não tive nenhuma ilusão.
Folha - E agora, o senhor tem alguma esperança em relação a um
projeto de civilização para o país?
Santos - Nós estamos retomando, com menor evidência, com
menor força, o exercício de pensar porque esse exercício não é
muito ajudado pela formas de
institucionalização da vida intelectual. Essa formidável burocratização das universidades, essa
idéia de que a universidade é uma
instituição como qualquer outra,
o que inclui até mesmo a sua associação com o mercado, tudo isso
constitui uma atitude de dificuldade muito forte para a produção
desse pensamento. Paralelamente, constitui um estímulo muito
forte para quem decide resistir.
Folha - O senhor, por exemplo...
Santos - A impressão que eu tenho é de que há uma aceleração
muito forte na produção de um
ente político no Brasil. A consciência está em gestação. Creio
que há uma espécie de revolução
que nem sempre é silenciosa que
se está dando e que nós não temos
as antenas para captar porque nos
acostumamos a um outro tipo de
raciocínio sobre o que é fazer política. Há toda uma produção da
política que é paralela às atividades dos partidos e vai confluir para alguma coisa que pode ser
orientada no sentido de melhoria
das condições gerais do país.
Folha - Orientada por quais lideranças?
Santos - Religiosos, políticos, intelectuais, sobretudo artistas, que
são os grandes líderes hoje em dia.
Compositores como Gilberto Gil,
por exemplo. E há toda uma sociedade desorganizada que cada
vez mais começa a descobrir o seu
lugar. Quando eu falo políticos,
estou incluindo as igrejas, que são
cheias deles, os sindicatos e pessoas que se esmeram em purificar
a sua vontade de ser consequente.
A confluência não virá da mobilização, mas da possibilidade de
conscientização; daí o papel da
universidade pública. A universidade não é o lugar para mobilização, nós não somos nem agitadores e nem militantes; nosso trabalho é de pensar e exprimir com
força esse pensamento. Creio que
é esse elo que está se criando hoje
no Brasil.
Folha - Quais seriam os políticos?
Santos - Uns que são iluminados
e aqueles que se preocupam com
visões fundadas nas análises concretos. Hoje há um certo nível de
exigência ética do político que
não se discute mais. A descoberta
de certas formas de hipocrisia no
comportamento político, apesar
do mascaramento pelo marketing
e pela mídia, já está se dando.
Também por isso eu creio que há
alguma coisa em plena gestão.
Folha - Perguntado certa vez pela
revista "Caros Amigos" se teria medo de entrar num restaurante chique e ser olhado com desdém por
ser negro, o senhor respondeu que
sim. É isso mesmo em 2001?
Santos - Os negros têm medo
sim. Não é só discriminação. Discriminação tem nos Estados Unidos, só que lá o negro iria quebrar
o restaurante, o que seria considerado justo; aqui a polícia seria
convocada para conter qualquer
manifestação. Eu me lembro de
duas pessoas importantes, o Florestan Fernandes e Celso Furtado,
em duas ocasiões diferentes, uma
em Nova York e outra em Paris,
de onde ambos me disseram: daqui a alguns anos vamos ter no
Brasil reações muito violentas da
parte dos negros em relação à situação em que eles se encontram.
Isso eles me disseram há vinte
anos.
Folha - Mas não aconteceu.
Santos - Está perto de acontecer,
espero que aconteça. Creio que
inclusive processos como o da
distribuição da educação vão ajudar porque os negros que conseguem estudar descobrem que não
têm igual acesso às oportunidades
e, sobretudo, eles sabem que raramente estarão em grandes escolas. Há algo que vai acelerar. São
grupos poucos numerosos e alguns deles se deixam cooptar de
uma forma ou de outra. Mas essa
cooptação vai se tornar impossível daqui a algum tempo e daí o
vaticínio de Florestan Fernandes e
Celso Furtado vai se realizar.
Folha - O seu novo livro é uma discussão sobre o Brasil?
Santos -Uma das dificuldades de
se discutir o Brasil é que não se fazem mais estudos de conjunto.
Há uma especialização, uma pontualização que não permite um
debate mais fecundo. A partir de
um certo número de premissas,
nós decidimos fazer uma análise
do Brasil da globalização, seus
efeitos no país e no território brasileiro, considerado o lugar da vida da sociedade.
A conclusão essencial é que um
território reflete a dificuldade de
se governar o país. São as grandes
empresas que governam o território e os governos perdem a autonomia de decisão. Há uma forma
de ingovernabilidade que nós vamos mostrar através dessa questão. Por exemplo, a geografia da
publicidade, que repete a concentração de renda; a informação e
como ela modela a vida nacional;
as periferias urbanas. O Brasil, daí
a pretensão do título.
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