São Paulo, quarta-feira, 08 de janeiro de 2003

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JANIO DE FREITAS

Social, mas não só

A regularização dos lotes e respectivas moradias nas favelas, determinada por Luiz Inácio Lula da Silva como uma das prioridades do governo, é mais um tema polêmico entre os que têm implicações sociais diretas. Se alguém disser que a natureza polêmica do tema não tem importância, porque o assunto não interessa aos que devem continuar tranquilizados, não há como o contestar. Mas a experiência com medida idêntica teve muita importância e faz prever que sua renovação não a terá em menor proporção.
Ao se tornar poder no Rio -uma virada inacreditável quando o regime militar ainda respirava-, o brizolismo anunciou a legalização das moradias em favelas, com o título de propriedade e dispensa de impostos. O programa não se cumpriu todo, por falta de recursos e exiguidade do mandato, mas em certas áreas foi aplicado e até ampliado, com uma urbanização incipiente. Os proprietários históricos dessas áreas ocupadas haviam deixado de pagar os impostos, e assim deram o motivo para vê-las tomadas legalmente pelo governo e distribuídas, também com todas as formalidades legais, aos ocupantes criadores da favela. Em outros casos, houve mesmo desapropriação, porque foi necessária ou para apressar a distribuição.
Um plano barato, justo, corajoso e de grande alcance social. Ninguém podia imaginar quais eram os seus outros alcances.
Já o anúncio da legalização de lotes e moradias levou ao ponto aumento do território da favela, com muitos moradores erguendo tetos precários em áreas adjacentes para obter, depois, a propriedade de mais este chão. A estes logo se juntaram levas procedentes do interior do Estado e, chamados pelos parentes, mais e mais nordestinos. O comércio de lotes em favelas da zona sul tornou-se atividade intensa e rentável. E mais favelizadora.
Ainda não de todo favelizadora, porém. A posse legal da moradia e seu chão levou os imaginosos a criar uma nova modalidade de especulação imobiliária. Os tetos das casas, ou lajes, passaram a ser vendidos para neles se erguerem outras casas. E os tetos destas tornaram-se vendáveis para a construção de mais um andar. Três, quatro andares. E mesmo cinco, há até seis. Crescimento que não cessa. Na engenharia precária, uma casa se encosta na outra na solidariedade arquitetônica que as impede de descerem, todas, morro abaixo. E vão subindo sempre mais, no morro e umas sobre as outras, em novos andares da especulação da imobiliária com o pobre.
O plano barato, justo, corajoso e de grande alcance, apesar de ser tudo isso, resultou em aumento da dimensão territorial das favelas anteriores, em aumento do número de favelas com novas áreas ocupadas à espera da legalização, e em aumento incontrolável da população favelada. Com todas as consequências conhecidas e nem por isso ausentes, um dia que seja, das páginas de jornal e dos telejornais.
Pode ser que o governo Lula e seu Ministério das Cidades consigam inventar medidas de preventivas, contra os resultados não pretendidos pela legalização dos lotes e respectivas moradias. Ainda que o consigam, continuará faltando aplicá-las e fiscalizar sua permanência, o que não parece mais fácil do que inventar medidas de fato preventivas.
Cá por mim, vizinho visual e testemunha de uma das favelas agigantadas pelo plano generoso, continuo supondo que a solução de justiça social para as favelas tem que ser também de justiça com suas cidades. E existem, porém menos apressadas e mais atentas às realidades vividas e às atuais.


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