São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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BRASIL CAMARADA

AGF Brasil Seguros, após protelar pagamento por meio de recursos, pediu e obteve anulação de débito

Fazenda cancela dívida de R$ 46,4 milhões

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A empresa AGF Brasil Seguros brigou na Justiça de 1992 a 2002 para tentar se livrar de uma dívida de R$ 46,4 milhões. Esgotada a via judicial, contornou o problema do modo mais improvável: o credor, com quem guerreava havia uma década, desistiu de receber. O nome dele é governo federal.
Partiu da AGF o pedido de cancelamento da dívida. Alegou que o prazo legal para a cobrança havia expirado. A seguradora, uma das seis maiores do país, foi atendida em 16 de julho de 2003, já sob Luiz Inácio Lula da Silva.
O passivo tributário da AGF foi anulado por meio de um despacho do próprio ministro da Fazenda. É de 16 de julho de 2003. Como o titular Antonio Palocci Filho estava em viagem, o documento foi firmado pelo interino Bernard Appy. Secretário-executivo da pasta da Fazenda, Appy é braço direito de Palocci. Seu despacho anotou: "Reconhece-se, no presente processo, a ocorrência de prescrição do crédito tributário". Mandou que fosse "cancelado", por "nulo que é".
Em documento confidencial de 19 de setembro de 2003, a Controladoria Geral da União, órgão de auditoria vinculado à Presidência da República, condenou o gesto da Fazenda. Disse que o "contribuinte [AGF] entrou, inúmeras vezes, com mandados de segurança protelatórios". Por essa razão, não deveria ter prosperado a tese da prescrição, que, nos casos de contenciosos tributários, ocorre após cinco anos.
"Apenas referendei um parecer da Procuradoria da Fazenda Nacional", disse Bernard Appy à Folha. "Tenho que confiar na Procuradoria. É o órgão que faz a análise jurídica das decisões no âmbito do ministério."

Governo versus governo
De fato, a decisão baseou-se em parecer da Procuradoria. Leva o número 877/2003. Foi escrito em 7 de janeiro de 2003, uma semana depois da posse de Lula. Transitou pelas mesas de três procuradores fazendários. Até que, em 26 de maio de 2003, subiu ao gabinete ministerial com o "aprovo" do procurador-geral Manoel Felipe Rêgo Brandão.
"A redação do texto é de inteira responsabilidade da Procuradoria da Fazenda Nacional", aquiesceu Rêgo Brandão. "O reconhecimento da prescrição, previsto em lei, não é um direito, mas um dever do procurador. Não podemos atirar a União numa ação suicida, sob pena de arcarmos com custos judiciais, que podem chegar a 10% ou 20% do valor da causa."
O pedido da empresa de seguros teve origem em São Paulo. Num primeiro parecer, o escritório local da Procuradoria da Fazenda se posicionou contra o cancelamento da dívida. O assunto chegou a Brasília, segundo o procurador-geral Rêgo Brandão, porque remanesciam dúvidas.
Dúvidas que a Controladoria Geral da União parece não enxergar. Como que convencidos da impropriedade da decisão favorável à companhia de seguros, os auditores sugerem em seu relatório que o processo seja remetido ao Ministério Público Federal, para que se manifeste sobre a decisão da Fazenda e, "se for o caso, abra inquérito para a apuração e imputação de responsabilidades cíveis e penais".
Até o momento, o relatório da Controladoria da União não chegou ao conhecimento do Ministério Público. Além do episódio envolvendo a AGF Brasil Seguros, o documento levanta dúvidas em outras direções. Foram noticiadas pela Folha domingo passado. Envolvem de parcelamentos supostamente irregulares de dívidas fiscais a violações no cadastro eletrônico que armazena os dados da dívida ativa da União.

Oito auditorias
O secretário-executivo Appy e o procurador-geral Rêgo Brandão receberam a reportagem da Folha juntos, na noite de quarta-feira. Disseram que não conheciam o relatório da Controladoria da União, redigido há mais de quatro meses. O repórter mostrou-lhes uma cópia.
Appy e Rêgo Brandão acharam absurdo que o documento houvesse "vazado" antes de chegar-lhes às mãos. O procurador-geral da Fazenda disse: "Não reconheço nos auditores autoridade para fazer considerações jurídicas".
Foi o próprio Rêgo Brandão quem solicitou à Controladoria da União que auditasse oito escritórios da Procuradoria da Fazenda: Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Paraná e Bahia.
O caso que envolve a AGF Brasil Seguros está mencionado num texto que expõe, em 42 páginas, os resultados da inspeção feita na capital paulista. Rêgo Brandão disse que só recebeu um outro documento, com um resumo das oito inspeções. Não há entre os papéis, segundo ele, o detalhamento do caso de São Paulo.
"Admito que possa haver extravios. Mas jamais me esqueceria de um documento em que meu nome é mencionado em tais circunstâncias. Definitivamente, não vi esse relatório."

"É comum, é corriqueiro"
Em pesquisa realizada nas últimas duas semanas, a Folha tentou localizar outras decisões em que, como no caso da AGF, um ministro da Fazenda houvesse chancelado o cancelamento de débitos tributários supostamente caducos por prescrição. Nada foi encontrado.
No encontro com Appy e Rêgo Brandão, o repórter perguntou se havia precedentes. E o procurador-geral: "Isso é comum, é corriqueiro, está previsto em lei". Instado a mencionar casos semelhantes, disse: "Eu precisaria fazer um levantamento".
Dali a 48 horas, Rêgo Brandão enviou ao repórter, via fax, uma folha de papel. Enumera outros quatro casos de prescrição. São dívidas diferentes, mas de um mesmo devedor: Chalé Materiais de Construção. Todas canceladas em 20 de fevereiro de 2003. Não há referência nem a valores nem à interferência do ministro da Fazenda.
Por que a decisão teve de ser submetida ao gabinete do ministro? "A competência para o reconhecimento de prescrição é do procurador", afirmou Rêgo Brandão. "Mas há casos que constituem uma oportunidade para pacificar o entendimento. Daí o encaminhamento ao ministro. Todos os procuradores agora sabem que são obrigados a admitir a prescrição nos casos em que ela é clara", declarou.
O parecer da Procuradoria da Fazenda Nacional que trata da AGF Brasil Seguros não informa o valor em jogo na causa. "Não sabia que a dívida era de R$ 46,4 milhões", reconheceu Bernard Appy. Não se interessou em perguntar? "O volume de papéis que somos obrigados a assinar diariamente é grande", disse.

"Providências céleres"
Pela lei, o reconhecimento da tese da prescrição de débitos tributários obriga o gestor público a apurar responsabilidades. No caso específico da AGF Seguros, é imperioso saber por que o governo demorou a cobrar um tributo cuja exigibilidade fora reconhecida da primeira à última instância do Judiciário.
"Pode ter havido crime ou mera interpretação equivocada de algum servidor", disse Appy. O parecer da Procuradoria da Fazenda e o despacho do ministro interino determinaram a devolução do processo a São Paulo, "para apuração das responsabilidades, se for o caso". Nenhuma sindicância foi instaurada.
"Recomendei que fossem adotadas providências para um encaminhamento mais célere", disse Rêgo Brandão. "O processo será enviado à Receita, para abertura de sindicância. Pode-se criticar a demora. A decisão foi tomada há mais de três meses [na verdade, há mais de seis meses] e não houve providência. Não deveria ser normal. Mas a falta de estrutura da administração pública faz com que coisas assim aconteçam."


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