São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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ELIO GASPARI

FFHH foi mãe, Lula é pai

A ekipekonômica que fez de FFHH uma mãe para os banqueiros fará de Lula um pai. Em 2003, o companheiro passou à banca um filé sem osso de R$ 91,6 bilhões. Esse foi o montante dos juros reais pagos pelo seu governo, ração de gato gordo, sem inflação nem variação cambial. Para cada R$ 100 que a turma emprestou, levou para casa, limpos, R$ 12,8.
O ervanário dos juros reais representou cerca de 6% do PIB, superou a arrecadação do Imposto de Renda das Pessoas Físicas e Jurídicas (R$ 82,4 bilhões). Em 2003, pela primeira vez na história, a sociedade brasileira pagou mais juros ao andar de cima do que gastou com a Previdência do andar de baixo.
Os juros reais pagos por Lula chegaram a quase o dobro daqueles pagos por FFHH em anos considerados normais como 2000 e 2001. As taxas da dupla Palocci-Meirelles nada tiveram a ver com perigo de inflação. Serviram apenas para engordar gatos.
Os R$ 91,6 bilhões que Lula pagou de juros reais no ano passado equivalem a US$ 30 bilhões, ou 10% do que as potências aliadas exigiram da Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial. Reunidos em Versalhes, os vencedores tiraram o couro dos alemães. Tomaram-lhes território e impuseram-lhes o pagamento de uma indenização que, em dinheiro de hoje, seria de US$ 323 bilhões.
O economista inglês John Maynard Keynes avisou: se os alemães concordassem em pagar tudo direitinho, estariam condenados à pobreza e à instabilidade política.
Na Alemanha de 1919, o dinheiro das reparações devia sair do país. No caso do Brasil, a maior parte do ervanário dos juros fica em Pindorama. Essa diferença impede que se leve a comparação adiante.
O Brasil fechou 2003 devendo perto de US$ 315 bilhões, cifra equivalente a quase 60% do valor de todas as riquezas que seu povo produz ao longo de um ano. Continuando-se com as taxas Palocci-Meirelles, antes do fim do governo de Lula, a ekipekonômica poderá comemorar: em 13 anos de poder, ter pago, só de juros, perto de US$ 300 bilhões, para ficar devendo mais ou menos outros US$ 300 bilhões. A maior realização financeira de Lula é idiomática: fechará o ano devendo mais de R$ 1 trilhão e, com isso, introduz o vocábulo no cotidiano nacional.
Um serviço de dar inveja à turma de Versalhes, que negociou as reparações devidas pela Alemanha.

Terceirizaram o Ministério do Trabalho

O Ministério do Trabalho, quem diria, terceirizou um bom pedaço dos seus serviços de atendimento ao público. Na região Sudeste, o fornecimento dessa mão-de-obra está nas mãos de duas empresas locadoras de gente. Há trabalhadores terceirizados nos mais estranhos serviços, como o de habilitação do seguro-desemprego. Está terceirizada a emissão de carteiras profissionais, um documento que, em tese, destinava-se a proteger o trabalhador de pragas tais como ser alugado.
Por conta de duas semanas de atraso na entrega dos vales-transporte aos funcionários, na semana passada boa parte deles deixou de comparecer aos locais de trabalho em São Paulo.
Caso exemplar de herança maldita. O tucanato federal deixou uma folha anual de terceirizados de quase R$ 700 milhões. As locadoras de bípedes ficam com o bom pedaço do dinheiro pago pelos serviços que o governo contrata.
Antes de ir para o Ministério do Trabalho, Ricardo Berzoini foi dirigente sindical, viveu com R$ 2.500 mensais e batalhou contra o aviltamento de sua classe. Depois, botou os aposentados octogenários na fila.

O carnaval melhora com Lygia Pape

Um bom livro para o Carnaval, até porque tem só cem páginas. É "Lygia Pape", a biografia de uma grande artista, personagem do esplendor cultural brasileiro da metade do século 20. A autora é Denise Mattar, ex-coordenadora de artes plásticas do MAM do Rio (1990-1997). Metade do livro é ocupado pela vida de Lygia contada por ela mesma. Um documento seco, rigoroso, livre como a arte da autora.
Nos anos 50 havia uma Lygia Pape subindo o morro da Mangueira com seu amigo Hélio Oiticica. Nos anos 80, quando os amigos da turma que em 1950 subia o morro da Mangueira compraram carros blindados, Lygia Pape estava na favela da Maré, estudando o casario. Fez de tudo, de balés e gravuras aos letreiros de "Deus e o Diabo", de Glauber Rocha, poesia e cinema. Sempre em voz baixa, tão baixa que levou 30 anos para narrar sua prisão, em 1973: "Nunca falei isso para ninguém, porque eu achava que era uma coisa que podia ser entendida como meio romântica e, ao mesmo tempo, oportunista".
Quando poucas mulheres dirigiam automóvel, ela ia no seu, descalça. Tem uma biblioteca de livros de culinária, ensina a amolecer peito de frango e coleciona obras sobre beringelas. Nos dias de tempestade, costumava ir com Hélio Oiticica, o maior artista plástico de sua época, tomar banho de mar no Arpoador. Aos 75 anos, continua inventando. Nas suas palavras: "Inventar é crescer".

Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música. Filha única e solteirona, detesta nepotismo. Ela se interessa pela transformação de palavras em gazuas. Ouviu do ministro Humberto Costa, da Saúde, a seguinte informação:
"O Ministério [da Saúde] afirma que não existe denúncia formal sobre irregularidades na fila de transplantes." (O aparelho do doutor Humberto sabia que o médico Daniel Tabak levara duas carteiradas para alterar critérios de credenciamento de hospitais e de realização de exames para transplantes de medula óssea. A ausência de "denúncia formal" justificava o silêncio.)
Duas semanas depois, Fábio Mesquita, coordenador de desenvolvimento da gestão descentralizada da Secretaria da Saúde da Prefeitura de São Paulo, informou à patuléia que não tinha "vínculo formal" com a psicóloga Regina Bueno nem com o produtor André Frateschi, que prestaram serviços à sua coordenadoria.
Explicando-se:
"A Regina Bueno, que foi minha companheira durante muitos anos, nunca foi formalmente casada comigo." "André Frateschi é companheiro da minha filha, mas ele não é formalmente casado com ela." (Frateschi é filho do secretário de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Celso Frateschi.)
Formalmente, Mesquita deixou o cargo. Costa ficou.

Ave Cesar

Durante sua viagem às terras inundadas do Piauí, Lula contou que lhe deram um copo d'água que não estava bem tratada. Serviu-se de água engarrafada. (R$ 1 o recipiente de litro e meio.)
A choldra da Vila Mocambinho, por onde ele passou, continuou tomando a água de sempre. Se uma família desabrigada tomar duas dessas garrafas por dia, vai-se embora uma bolsa-família.
Lula reclama dos seus antecessores, mas não sabe como se parece com eles.
Veja o ilustre companheiro o que escreveu seu antecessor Pedro 2º, o Banana, no dia 18 de outubro de 1859, quando ia a caminho da cachoeira de Paulo Afonso e estava nas cercanias de Piranhas, às margens do São Francisco:
Queixava-se das pulgas, do calor e da "falta de água que é péssima aí, tardando a de Vichy [renomada marca francesa] que vinha na bagagem, por falta de condução. [...] Enfim chegou, ou antes acharam, de madrugada a água de Vichy, e muito bem me soube um copo dela".
Lula tem razão. A desgraça nordestina é obra dos seus antecessores. E de cada um de seus sucessores.

Xô, freguês

Em junho do ano passado, depois de dizer que não produzia aviões com o alcance para um vôo Rio-Paris sem escala, o vice-presidente-executivo da Embraer escreveu à Comissão de Seleção do Projeto VC-X, a do AeroLula:
"Gostaríamos, entretanto, de declarar que os planos da nossa empresa contemplam o desenvolvimento de uma aeronave para o transporte de autoridades [...] que, com certeza, cumprirá os requisitos ora em consideração pelo Comando da Aeronáutica."
Na quinta-feira, passados nove meses, o presidente da Embraer, Maurício Botelho, divulgou uma nota informando:
"A Embraer esclarece [...] que não tem planos para dispor de aeronave desta categoria em horizonte inferior a pelo menos cinco anos."
Caso raro de empresa anunciando que não pretende produzir uma mercadoria em menos de cinco anos. Ninguém pode duvidar de que Botelho diz o certo, mas ficaria muito melhor para os costumes empresariais brasileiros se o doutor tivesse dito a mesma coisa (com prazo explícito) em junho do ano passado.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota. Ele assistiu ao bate-boca da prefeita Marta Suplicy (recém-chegada de Londres) com a dentista Simone Correa numa área inundada de São Paulo. Adorou esse trecho:
Simone: Ela quer plantar coqueiros nos Jardins, onde ela mora. A gente passa necessidade. Todo ano é enchente, e isso me revolta.
Marta: Lá eles pagam R$ 20 mil (de IPTU).
O idiota deduziu que a prefeita de São Paulo agrada aos moradores dos bairros onde cobra R$ 20 mil de IPTU plantando coqueiros em suas ruas. Vai daí que o andar de cima de São Paulo teria um fraco por mato.
O idiota pretende abrir uma loja de plantas na rua Grécia, perto da velha casa da prefeita. Em 2002 ela pagou um IPTU de R$ 21 mil, sem coqueiro.

ENTREVISTA

Maria Adelaide Amaral

(61 anos, escritora, autora, com Alcides Nogueira, da minissérie "Um Só Coração")

- Quando é que a senhora vai se livrar de Fernão, o marido de Yolanda Penteado (Herson Capri, na telinha)?
- Na terça-feira de Carnaval a Yolanda (Ana Paula Arósio) vai encontrá-lo na cama com uma mulher e dará um basta. A crise de 1929 abateu-o, e enquanto ele vivia deprimido, Yolanda reestruturou a fazenda Empyreo, trocou o plantio do café pelo do algodão. A cena da cama é a gota d'água. Muita gente sentirá falta do Fernão. O personagem é popular, sobretudo entre mulheres que vêem nele um "homem experiente". Antes do flagrante de Fernão o coronel Totonho se mata. Foi outro que se deu mal na crise. Vai-se saber se o Bernardo é seu filho ou do pianista Manfredi, que mandou matar. Você não acha que o coronel é o pai? Fernão e Totonho serão substituídos por um grande personagem, de um novo momento da história de São Paulo e do Brasil: Ciccillo Matarazzo, o segundo marido de Yolanda (Edson Celulari, com o voto da família).
- O que a senhora viu em Ciccillo Matarazzo?
- Um charmeur, rico, empreendedor, poderoso, culto e mulherengo. Eu me apaixonei por ele. Conversei com pelo menos três de suas namoradas. Em 1987 eu conheci a maravilhosa espanhola Balbina (Soledad/Daniela Escobar na novela). Ela foi sua amante desde os anos 30 e ele a deixou por Yolanda, depois da guerra. Nas décadas seguintes, Ciccillo sempre visitou Soledad. Tomava um uísque, servia-se uma sopa e ia embora. Soledad nunca lhe pediu nada. Um dia Ciccillo perguntou-lhe: "Cosa vuoi? [O que você quer?]". "Um túmulo no cemitério da Consolação", respondeu Balbina. Ele o comprou. Anos depois, outra namorada, Vanda Svevo, prima do escritor Italo Svevo, morreu num desastre de avião. Ela viajara em seu lugar. Ciccillo enterrou-a no túmulo comprado para Balbina. Aos 81 anos, depois de ter se separado de Yolanda, ele se casou com Balbina e viveu com ela até a morte, num grande apartamento, no Conjunto Nacional. Balbina está na capela dos Matarazzo, no cemitério da Consolação. Ela não quis compartilhar túmulo com Vanda Svevo.
Ciccillo e Assis Chateaubriand (Antonio Caloni) serão os grandes personagens masculinos dessa fase. É um mistério que esses dois homens tenham sido amigos. Nada tinham em comum, além de Yolanda.
- A minissérie terminará com a cena dos amigos de Yolanda Penteado espalhando suas cinzas em volta da velha figueira de sua antiga fazenda, em Leme?
- Não. A figueira aparecerá em outra circunstância. Yolanda morreu em 1983, mas a minissérie acabará com a abertura da grande Bienal de São Paulo, a segunda. Ela inaugurou os festejos do quarto centenário da cidade. Foi um grande momento da nossa cultura, produto do refinamento e do trabalho de Yolanda e Ciccillo. A idéia de fazer uma exposição como a de Veneza foi dele. A segunda Bienal é inesquecível. Graças ao conhecimento com David Rockefeller, Yolanda conseguiu que o Museu de Arte Moderna de Nova York emprestasse o painel Guernica, de Picasso. Vieram esculturas de Alexander Calder e Henry Moore, quadros de Mondrian e Paul Klee. Yolanda e Ciccillo foram um casal unido pelos projetos como a Bienal, o MAM de São Paulo, o Teatro Brasileiro de Comédia e a Cinematográfica Vera Cruz. Até na hora de se separar, inventaram um projeto: uma festa para 300 pessoas.


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