UOL

São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª

BENEDITA DA SILVA

"Sei andar muito bem num tapete vermelho e subir as escadas de uma favela", afirma a petista

Ameaçada de deixar o governo, ministra afirma ser um símbolo

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O site do Ministério da Assistência Social informa que a titular da pasta é uma síntese da exclusão social no Brasil: mulher, negra e favelada. Na iminência de uma reforma ministerial que pode lhe tirar o gabinete na Esplanada, a ministra Benedita da Silva recupera o slogan e diz ser um "símbolo" no governo Lula.
Aos 61 anos, Benedita conta que só deixou a casa na favela (Chapéu Mangueira, no Rio de Janeiro) há quatro anos. Com mais de 20 anos de carreira política, afirma ter conquistado "intimidade" com o poder. E que o poder não é como as pessoas pensam, mas bem mais simples, assim como o "estrogonofe nada mais é do que um picadinho", compara.
"Gosto de estar ministra, deputada, senadora. Gosto porque sempre batalhei para isso, sempre busquei isso", resume. "Sei andar muito bem num tapete vermelho e subir as escadas de uma favela. Sei equilibrar muito bem um chapéu na minha cabeça da mesma forma que uma lata d'água. Sei perfeitamente mexer com os talheres, assim como lavá-los."
Fundadora do PT nos anos 80, ela insiste em que o partido não mudou ao assumir o governo e que continua buscando o socialismo. "Nós estamos construindo [o socialismo]. E não podemos construir fora do governo. O sal fora da massa não tem efeito, é como fermento fora da massa", diz. Os detalhes, a seguir:
 

Folha - Como a sra. avalia o primeiro ano do governo Lula na área social?
Benedita da Silva -
A primeira coisa foi a arrumada que o governo deu nessa área social. Tínhamos muitas ações sobrepostas, fragmentadas, sem instrumento de acompanhamento. A unificação dos programas de transferência de renda foi um dos grandes passos. Os ministérios que o presidente criou também. No nosso caso, o da Assistência Social, criado com a função de articular as políticas na área social, foi um grande instrumento. Este governo tem empoderado [fortalecido] as famílias, na medida em que aumenta os benefícios, aumenta as condicionalidades [a frequência às aulas e aos postos de saúde], aumenta as oportunidades e acompanha essas famílias.

Folha - Se o ministério tivesse esse papel de articulador das ações da área social, não seria natural que gerenciasse o Bolsa-Família?
Benedita -
O natural para nós foi articular o Bolsa-Família. Porque este ministério é não só o articulador, mas o formulador de política na área social. Estamos formulando essa política, buscando um sistema único de assistência social, e isso não se faz de uma hora para outra.

Folha - Há quem defenda que o presidente Lula aproveite a reforma ministerial para mexer na estrutura da área social e, eventualmente, extinguir a sua pasta.
Benedita -
O presidente foi quem teve o gesto de criar o ministério e é ele quem tem de avaliar e fazer as mudanças. Não tenho nenhuma preocupação porque ele foi eleito para governar para todos, para ter parceria; ele sabe que o governo precisa estar pactuando, repactuando. Se o presidente precisar de todo e qualquer instrumento que dinamize, temos mais é que apoiar a decisão. Ele é um homem justo, equilibrado, muito interessado e muito comprometido. Eu falo isso com muita paixão, porque conheço o Lula há muito tempo.

Folha - Desde quando?
Benedita -
Desde a fundação do Partido dos Trabalhadores. Eu sou a centésima não sei quanto [filiada], uma das primeiras. Porque saía de porta em porta batendo e dizendo: olha, tem um partido que vai dar vez e voz para as mulheres, [para] os pobres, e vocês têm de vir.

Folha - A sra. sente muita diferença entre o PT dos anos 80 e o PT que está no governo hoje, às vésperas da provável expulsão da senadora Heloísa Helena?
Benedita -
Olha, naquele PT dos anos 80 o centralismo democrático funcionou para a contribuição partidária, os princípios programáticos do partido, funcionou para a convivência plural das tendências. Se nos filiamos a esse partido, sabemos como ele é. O partido sempre defendeu alternância de poder e está no poder. Não tem nenhuma diferença. A diferença é que o partido hoje está no poder.

Folha - Mas o partido não deixou parte das idéias para trás?
Benedita -
O PT continua tendo as mesmas correntes, o mesmo ideal. Hoje nós somos governo, e não é um governo só do PT. O partido não mudou. O partido continua perseguindo seus ideais socialistas. Quais são os instrumentos para que você possa realmente dar condição a que essa população excluída esteja incluída? Você tem de construir para que isso aconteça. Nós estamos construindo. E não podemos construir fora do governo. O sal fora da massa não tem efeito, é como fermento fora da massa.
A arte de governar está em conviver com essas diferenças. Imagine se o pobre dissesse "não" aos ricos, "pra rico eu não faço nada". Você continuaria totalmente pobre, porque para onde você iria? E se o rico dissesse: "não quero nem saber dos pobres", teriam de lavar muito chão por aí. Eu coloco essa simbologia porque ela é bem simples, popular, de entendimento de todos.

Folha - A falta de dinheiro, resultado das metas recordes de superávit primário, não atrapalha a política social? Não acabou até limitando o número de beneficiários do Bolsa-Família para as famílias que têm renda de, no máximo, até R$ 100 por pessoa, e não meio salário mínimo, por exemplo?
Benedita -
Não limitou. Eu vou insistir porque é um erro. Este governo fez com que quem ganhava R$ 15 ou R$ 30 ganhe hoje R$ 150.

Folha - Esses R$ 150 são de onde?
Benedita -
Estou dizendo que houve aumento dos benefícios, quem ganhava R$ 15 passa a ter R$ 30, R$ 50, R$ 100, dependendo se está no Bolsa-Família, se está no Peti [Programa de Erradicação do Trabalho Infantil], ou se tem BPC [Benefício de Prestação Continuada, pago a idosos e a deficientes], que corresponde ao salário mínimo. Em determinados casos, dobrou, triplicou até. A família não receberá mais o Vale-Gás de R$ 15 [a cada dois meses], mas recebe o Bolsa-Família, que paga tanto dependendo do número de filhos que ele tenha em casa. Não aumentou?

Folha - O Bolsa-Família paga até R$ 95 para famílias com renda até R$ 50 por pessoa e pelo menos três filhos de até 15 anos. Não chega a R$ 150.
Benedita -
Não estou colocando valores no Bolsa-Família, mas dizendo que, em alguns benefícios, duplicaram, triplicaram, na medida em que fizemos os ajustes. Está escrito lá na minha Bíblia: "É digno o obreiro do seu salário".

Folha - A Bíblia está sempre à mão?
Benedita -
Tem uma na minha cabeceira, outra na minha sala e outra aqui [aberta, num suporte sobre a mesa de trabalho]. Eu sempre tive isso. Faz parte da minha energia, da minha força. Já li a Bíblia várias vezes, de frente pra trás, de trás pra frente, mas é mais comum em casa, porque tenho o meu momento de oração, de agradecer a Deus pelo dia.

Folha - Às vezes eles são difíceis, como é conviver com o poder?
Benedita -
Quem tem um sonho, uma ideologia, e quem tem fé realmente sabe lidar com o poder. Eu sei lidar com o poder. Já servi o poder, hoje estou no poder e a única coisa que nenhuma pessoa deve perder é a sua identidade. Quando a gente não perde a identidade, sabe trabalhar os momentos difíceis.

Folha - Foi difícil ouvir o ministro José Dirceu (Casa Civil) defender seu afastamento do ministério depois da viagem à Argentina à custa dos cofres públicos?
Benedita -
Não, porque eu trato política com muita racionalidade. E isso não foi determinado pelo presidente. Eu tenho consciência do papel que tenho que desempenhar. É óbvio e ululante que o PT tenha em seu currículo o fato de ser o partido que mais representação popular tem, até na Presidência da República. Eu sei o que representa o Luiz Inácio Lula da Silva presidente do Brasil.
Os outros devem estar analisando o que eu represento aqui ou fora daqui, como o tempo em que morei na favela, fui do departamento feminino, era do serviço social da igreja, presidente da associação dos moradores, cada momento da nossa militância. Devemos ser símbolos de luta e de vitória. Não é fácil estar onde estamos. Então, eu trato muito bem essa coisa de poder. Eu tenho intimidade com o poder. E há coisas na minha vida bem interessantes.

Folha - Por exemplo?
Benedita -
Quando fui eleita vereadora em 82, disse a seguinte frase: "Mulher, negra e favelada, assim o prometo". Você tem de se investir e ter consciência. E não saí do morro, só saí do morro agora. Até os 57 anos de idade, estava no Chapéu Mangueira, depois é que fui morar em Jacarepaguá, zona oeste do Rio. Quando assumi o governo do Rio, perguntaram como eu iria morar no palácio, como ia lidar com as artes do palácio, com os tapetes. E eu disse: eu sou uma profissional, eu sei andar nos tapetes, sabe por quê? Porque eu sei limpar os tapetes. Se uma pessoa que não limpa, não cozinha, que não faz absolutamente nada dessa natureza, sabe comer com garfo, sabe andar no tapete, uma pessoa que limpa, que conhece todas as técnicas... Hoje, na nossa sociedade, esqueci do dito, a vida imita o artista... como é?

Folha - A vida imita a arte?
Benedita -
Isso. Hoje você chega a uma casa de pobre e vai ter tudo o que tem na casa do rico, só que ele vai comprar na rua da Alfândega, se estiver no Rio. Põe o jarro, põe a água e põe a planta. Ele não precisa exibir que o jarro é de cristal, faz o mesmo efeito. Eu nunca entro numa butique para comprar um vestido, não mesmo. E vou andar chiquérrima sempre.
Um dia vou escrever um livro de culinária com passagens engraçadas, como a primeira vez em que me ofereceram estrogonofe. Eu pensei, "meu Deus, como vou comer isso?". Até ver que era um picadinho, que eu faço com qualquer carne, não precisa ser filé mignon. A única diferença é que, em vez de champinhon, eu botava palmito, que eu mesma pegava perto de casa.
O poder é exatamente isso, a maior simplicidade, não tem essa coisa que as pessoas pensam. Saber lidar com isso é uma questão de fé. E eu sei lidar muito bem. Sei andar bem num tapete vermelho e subir as escadas de uma favela. Sei equilibrar muito bem um chapéu na minha cabeça da mesma forma que uma lata d'água. Sei perfeitamente mexer com os talheres, assim como lavá-los. Eu sei que há tempo para todas as coisas.
Gosto de estar ministra, deputada, senadora. Gosto, faz parte do meu projeto político. Gosto porque sempre batalhei para isso.

Folha - A sra. tem tido oportunidade de conversar com o presidente ultimamente? Ou o poder tem também suas barreiras?
Benedita -
Sou servidora pública, acostumada a trabalhar numa seção em que só se consegue ver o chefe no dia do Natal, na confraternização. E tenho meus métodos quando vejo que preciso falar com o presidente e não consigo.

Folha - E quais são?
Benedita -
Não posso contar porque todos vão fazer o mesmo. Aqui (apesar do pouco tempo), as pessoas ainda abrem a porta, principalmente o presidente. Ele chama para churrasquinho, futebol, papo informal. Ele conversa, chama para uma solenidade, é uma forma de estar próximo. Eu sou muito tranquila com o Lula, eu o amo de paixão. Tudo o que ele fizer está bem-feito.



Texto Anterior: Operação Anaconda: Rocha Mattos investigou 4 juízes
Próximo Texto: Perfil
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.