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ENTREVISTA DA 2ª
BENEDITA DA SILVA
"Sei andar muito bem num tapete vermelho e subir as escadas de uma favela", afirma a petista
Ameaçada de deixar o governo, ministra afirma ser um símbolo
MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O site do Ministério da Assistência Social informa que a titular da
pasta é uma síntese da exclusão
social no Brasil: mulher, negra e
favelada. Na iminência de uma reforma ministerial que pode lhe tirar o gabinete na Esplanada, a ministra Benedita da Silva recupera
o slogan e diz ser um "símbolo"
no governo Lula.
Aos 61 anos, Benedita conta que
só deixou a casa na favela (Chapéu Mangueira, no Rio de Janeiro) há quatro anos. Com mais de
20 anos de carreira política, afirma ter conquistado "intimidade"
com o poder. E que o poder não é
como as pessoas pensam, mas
bem mais simples, assim como o
"estrogonofe nada mais é do que
um picadinho", compara.
"Gosto de estar ministra, deputada, senadora. Gosto porque
sempre batalhei para isso, sempre
busquei isso", resume. "Sei andar
muito bem num tapete vermelho
e subir as escadas de uma favela.
Sei equilibrar muito bem um chapéu na minha cabeça da mesma
forma que uma lata d'água. Sei
perfeitamente mexer com os talheres, assim como lavá-los."
Fundadora do PT nos anos 80,
ela insiste em que o partido não
mudou ao assumir o governo e
que continua buscando o socialismo. "Nós estamos construindo [o
socialismo]. E não podemos
construir fora do governo. O sal
fora da massa não tem efeito, é como fermento fora da massa", diz.
Os detalhes, a seguir:
Folha - Como a sra. avalia o primeiro ano do governo Lula na área
social?
Benedita da Silva - A primeira
coisa foi a arrumada que o governo deu nessa área social. Tínhamos muitas ações sobrepostas,
fragmentadas, sem instrumento
de acompanhamento. A unificação dos programas de transferência de renda foi um dos grandes
passos. Os ministérios que o presidente criou também. No nosso
caso, o da Assistência Social, criado com a função de articular as
políticas na área social, foi um
grande instrumento. Este governo tem empoderado [fortalecido]
as famílias, na medida em que aumenta os benefícios, aumenta as
condicionalidades [a frequência
às aulas e aos postos de saúde],
aumenta as oportunidades e
acompanha essas famílias.
Folha - Se o ministério tivesse esse papel de articulador das ações
da área social, não seria natural
que gerenciasse o Bolsa-Família?
Benedita - O natural para nós foi
articular o Bolsa-Família. Porque
este ministério é não só o articulador, mas o formulador de política
na área social. Estamos formulando essa política, buscando um sistema único de assistência social, e
isso não se faz de uma hora para
outra.
Folha - Há quem defenda que o
presidente Lula aproveite a reforma ministerial para mexer na estrutura da área social e, eventualmente, extinguir a sua pasta.
Benedita - O presidente foi
quem teve o gesto de criar o ministério e é ele quem tem de avaliar e fazer as mudanças. Não tenho nenhuma preocupação porque ele foi eleito para governar
para todos, para ter parceria; ele
sabe que o governo precisa estar
pactuando, repactuando. Se o
presidente precisar de todo e
qualquer instrumento que dinamize, temos mais é que apoiar a
decisão. Ele é um homem justo,
equilibrado, muito interessado e
muito comprometido. Eu falo isso com muita paixão, porque conheço o Lula há muito tempo.
Folha - Desde quando?
Benedita - Desde a fundação do
Partido dos Trabalhadores. Eu
sou a centésima não sei quanto
[filiada], uma das primeiras. Porque saía de porta em porta batendo e dizendo: olha, tem um partido que vai dar vez e voz para as
mulheres, [para] os pobres, e vocês têm de vir.
Folha - A sra. sente muita diferença entre o PT dos anos 80 e o PT que
está no governo hoje, às vésperas
da provável expulsão da senadora
Heloísa Helena?
Benedita - Olha, naquele PT dos
anos 80 o centralismo democrático funcionou para a contribuição
partidária, os princípios programáticos do partido, funcionou
para a convivência plural das tendências. Se nos filiamos a esse
partido, sabemos como ele é. O
partido sempre defendeu alternância de poder e está no poder.
Não tem nenhuma diferença. A
diferença é que o partido hoje está
no poder.
Folha - Mas o partido não deixou
parte das idéias para trás?
Benedita - O PT continua tendo
as mesmas correntes, o mesmo
ideal. Hoje nós somos governo, e
não é um governo só do PT. O
partido não mudou. O partido
continua perseguindo seus ideais
socialistas. Quais
são os instrumentos para que você
possa realmente
dar condição a
que essa população excluída esteja
incluída? Você
tem de construir
para que isso
aconteça. Nós estamos construindo. E não podemos construir fora do governo. O
sal fora da massa
não tem efeito, é
como fermento
fora da massa.
A arte de governar está em conviver com essas diferenças. Imagine se o pobre dissesse "não" aos ricos, "pra rico eu
não faço nada". Você continuaria
totalmente pobre, porque para
onde você iria? E se o rico dissesse:
"não quero nem saber dos pobres", teriam de lavar muito chão
por aí. Eu coloco essa simbologia
porque ela é bem simples, popular, de entendimento de todos.
Folha - A falta de dinheiro, resultado das metas recordes de superávit primário, não atrapalha a política social? Não acabou até limitando o número de beneficiários do
Bolsa-Família para as famílias que
têm renda de, no máximo, até
R$ 100 por pessoa, e não meio salário mínimo, por exemplo?
Benedita - Não limitou. Eu vou
insistir porque é um erro. Este governo fez com que quem ganhava
R$ 15 ou R$ 30 ganhe hoje R$ 150.
Folha - Esses R$ 150 são de onde?
Benedita - Estou dizendo que
houve aumento dos benefícios,
quem ganhava R$ 15 passa a ter
R$ 30, R$ 50, R$ 100, dependendo
se está no Bolsa-Família, se está
no Peti [Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil], ou se tem BPC
[Benefício de Prestação Continuada, pago a idosos e a deficientes], que corresponde ao salário mínimo. Em determinados casos, dobrou,
triplicou até. A família não receberá mais
o Vale-Gás de R$ 15
[a cada dois meses],
mas recebe o Bolsa-Família, que paga
tanto dependendo
do número de filhos
que ele tenha em casa. Não aumentou?
Folha - O Bolsa-Família paga até R$ 95
para famílias com renda até R$ 50 por pessoa e pelo menos três
filhos de até 15 anos. Não chega a
R$ 150.
Benedita - Não estou colocando
valores no Bolsa-Família, mas dizendo que, em alguns benefícios,
duplicaram, triplicaram, na medida em que fizemos os ajustes. Está
escrito lá na minha Bíblia: "É digno o obreiro do seu salário".
Folha - A Bíblia está sempre à
mão?
Benedita - Tem uma na minha
cabeceira, outra na minha sala e
outra aqui [aberta, num suporte
sobre a mesa de trabalho]. Eu
sempre tive isso. Faz parte da minha energia, da minha força. Já li a
Bíblia várias vezes, de frente pra
trás, de trás pra frente, mas é mais
comum em casa, porque tenho o
meu momento de oração, de
agradecer a Deus pelo dia.
Folha - Às vezes eles são difíceis,
como é conviver com o poder?
Benedita - Quem tem um sonho,
uma ideologia, e quem tem fé
realmente sabe lidar com o poder.
Eu sei lidar com o poder. Já servi o
poder, hoje estou no poder e a
única coisa que nenhuma pessoa
deve perder é a sua
identidade. Quando a gente não
perde a identidade, sabe trabalhar
os momentos
difíceis.
Folha - Foi difícil
ouvir o ministro José Dirceu (Casa Civil) defender seu
afastamento do
ministério depois
da viagem à Argentina à custa dos cofres públicos?
Benedita - Não,
porque eu trato
política com muita racionalidade. E
isso não foi determinado pelo presidente. Eu tenho
consciência do papel que tenho que desempenhar.
É óbvio e ululante que o PT tenha
em seu currículo o fato de ser o
partido que mais representação
popular tem, até na Presidência
da República. Eu sei o que representa o Luiz Inácio Lula da Silva
presidente do Brasil.
Os outros devem estar analisando o que eu represento aqui ou fora daqui, como o tempo em que
morei na favela, fui do departamento feminino, era do serviço
social da igreja, presidente da associação dos moradores, cada
momento da nossa militância.
Devemos ser símbolos de luta e de
vitória. Não é fácil estar onde estamos. Então, eu trato muito bem
essa coisa de poder. Eu tenho intimidade com o poder. E há coisas
na minha vida bem interessantes.
Folha - Por exemplo?
Benedita - Quando fui eleita vereadora em 82, disse a seguinte
frase: "Mulher, negra e favelada,
assim o prometo". Você tem de se
investir e ter consciência. E não
saí do morro, só saí do morro
agora. Até os 57 anos de idade, estava no Chapéu
Mangueira, depois é
que fui morar em Jacarepaguá, zona oeste do Rio. Quando
assumi o governo do
Rio, perguntaram
como eu iria morar
no palácio, como ia
lidar com as artes do
palácio, com os tapetes. E eu disse: eu sou
uma profissional, eu
sei andar nos tapetes,
sabe por quê? Porque eu sei limpar os
tapetes. Se uma pessoa que não limpa,
não cozinha, que não
faz absolutamente
nada dessa natureza,
sabe comer com garfo, sabe andar no tapete, uma pessoa que
limpa, que conhece todas as técnicas... Hoje, na nossa sociedade, esqueci do dito, a vida imita o artista... como é?
Folha - A vida imita a arte?
Benedita - Isso. Hoje você chega
a uma casa de pobre e vai ter tudo
o que tem na casa do rico, só que
ele vai comprar na rua da Alfândega, se estiver no Rio. Põe o jarro, põe a água e põe a planta. Ele
não precisa exibir que o jarro é de
cristal, faz o mesmo efeito. Eu
nunca entro numa butique para
comprar um vestido, não mesmo.
E vou andar chiquérrima sempre.
Um dia vou escrever um livro de
culinária com passagens engraçadas, como a primeira vez em que
me ofereceram estrogonofe. Eu
pensei, "meu Deus, como vou comer isso?". Até ver que era um picadinho, que eu faço com qualquer carne, não precisa ser filé
mignon. A única diferença é que,
em vez de champinhon, eu botava
palmito, que eu mesma pegava
perto de casa.
O poder é exatamente isso, a
maior simplicidade, não tem essa
coisa que as pessoas pensam. Saber lidar com isso é uma questão
de fé. E eu sei lidar muito bem. Sei
andar bem num tapete vermelho
e subir as escadas de uma favela.
Sei equilibrar muito bem um chapéu na minha cabeça da mesma
forma que uma lata d'água. Sei
perfeitamente mexer com os talheres, assim como lavá-los. Eu sei
que há tempo para todas as coisas.
Gosto de estar ministra, deputada, senadora. Gosto, faz parte do
meu projeto político. Gosto porque sempre batalhei para isso.
Folha - A sra. tem tido oportunidade de conversar com o presidente ultimamente? Ou o poder tem
também suas barreiras?
Benedita - Sou servidora pública, acostumada a trabalhar numa
seção em que só se consegue ver o
chefe no dia do Natal, na confraternização. E tenho meus métodos quando vejo que preciso falar
com o presidente e não consigo.
Folha - E quais são?
Benedita - Não posso contar
porque todos vão fazer o mesmo.
Aqui (apesar do pouco tempo), as
pessoas ainda abrem a porta,
principalmente o presidente. Ele
chama para churrasquinho, futebol, papo informal. Ele conversa,
chama para uma solenidade, é
uma forma de estar próximo. Eu
sou muito tranquila com o Lula,
eu o amo de paixão. Tudo o que
ele fizer está bem-feito.
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