São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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JANIO DE FREITAS

Farsa, poder e mídia

Apesar de tudo ou por causa de tudo, tanto faz, foi uma semana excelente.
A reabertura dos cassinos de bingo, por exemplo, não motivou uma festança apenas para jogadores e donos do jogo. O jornalismo político também se esbaldou com a alegada fragilidade da base governista; o governo arranjou mais esse pretexto para presentear cargos públicos a malufistas e peemedebistas e, você já havia pensado nisso, vários senadores saem com justas recompensas por sua compreensão para com os cassinos. Nessa expansiva alegria, era natural que alguma coisinha se perdesse.
Perdeu-se, não por acaso, a relevância devida à reabertura dos bingos por apenas dois votos, 33 senadores contra 31, estando ausentes do Senado quatro senadores do PT. Mesmo os tantos recursos do "lobby" dos bingos são incapazes de negar que 31 mais 4 dariam 35 votos contra o jogo. E pronto.
Não é toda semana, nem todo mês, nem mesmo todo ano, que Antonio Palocci abre uma brecha na agenda de conversas, almoços e jantares com banqueiros e agentes do FMI, para falar aos brasileiros sobre a sua política econômica. E expôs uma concepção muito interessante: o Brasil voltará a crescer quando os estrangeiros, convencidos de que o país está com suas finanças arrumadas pelo governo Lula, vierem investir no crescimento. Ou seja, a depender da política de Antonio Palocci, jamais haverá crescimento verdadeiro. A história econômica e, se não bastasse, a atualidade asiática demonstram que são políticas e investimentos governamentais os impulsores do crescimento em países atrasados, só a partir dessa preliminar havendo interesse amplo para o capital estrangeiro produtivo.
O PT na TV ofereceu, é claro, variadas estrelas com a missão de transmitir-nos o que só é visto das alturas palacianas: o governo Lula está fazendo prodígios de justiça social, de criação de empregos no interior, redução dos juros, retomada do crescimento, queda de preços e muito mais. Daí a observação crítica que orientou a intervenção de José Dirceu e o próprio programa: "O governo tem só um ano e quatro meses, não é correto cobrar dele a solução de problemas criados durante 20 anos". Não é correto mesmo. Talvez por isso ninguém faça tal cobrança. Cobrado do governo é que afinal comece a fazer algo dos seus compromissos de campanha. Comece afinal a resgatar também a sua dívida com 52 milhões de pessoas.
A relação insolúvel entre farsa, poder e mídia teve momentos de exuberância consagradora nessa semana de pasmo com a tortura de iraquianos por norte-americanos e britânicos. Os congressistas e a mídia dos Estados Unidos esqueceram as atrocidades dos seus compatriotas no Vietnã, que tardaram tanto a reconhecer, quando a mídia européia já a mostrava por anos e anos? Desde os anos 50, os Estados Unidos espalharam pelo mundo instrutores de métodos atrozes de interrogatório. Foram os mestres dos brasileiros, até que suas técnicas fossem superadas pelas novas criações ensinadas por israelenses.
A mídia e os congressistas dos Estados Unidos sempre souberam tudo a respeito da ferocidade dos seus militares, agentes da CIA e policiais, até por não ter faltado quem, de vez em quando, ousasse furar o silêncio conivente e divulgasse os ensinamentos bárbaros em quartéis e escolas policiais. A reação da grande mídia foi sempre a de sufocar tais revelações. A dos congressistas, a de exigir um bode expiatório, em geral um sargentão idiotizado.
A relutância dos jornais e da TV norte-americanos a adotar o assunto das atrocidades no Iraque, tal como faz com os prisioneiros dos Estados Unidos em Guantánamo, recebeu na semana um adorno muito ilustrativo. Foi um artigo, divulgado com destaque também no Brasil, de Thomas Friedman, ultradireitista que é o principal articulista do "The New York Times". Escreveu indignado a propósito das atrocidades. O sentido do artigo não é, porém, a condenação das atrocidades, mas o fato de suscitarem condenação aos Estados Unidos, na opinião pública mundial. Muito simples: o mal não está nas atrocidades, está na sua divulgação.
Como representação da atualidade e dos homens que lhe dão forma e voz, a semana foi excelente. Pena que esses homens tenham piorado um pouco mais. E façam o mesmo com Brasil e com o mundo.



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