São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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NO PLANALTO

Os sem-Cohiba esperam a hora de entrar em cena

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A diferença entre o dinheiro mixuruca e o dinheiro graúdo está no timbre. A moeda farta não fala. Grita. A grana parca também não fala. Emudece. O silêncio do salário mínimo, por exemplo, pode ser medido de várias maneiras. Aqui se utilizará, por eloqüente, a escala dos charutos. É mais próxima do universo petista.
Companheiros como Lula e Dirceu apreciam os cubanos. Derretem-se por um bom Cohiba. Sorvem-no em qualquer bitola. Mas preferem o "Esplendido" (17,8 cm de comprimento; 1,86 cm de diâmetro). Coisa fina. A caixa com 25 unidades custa algo como R$ 2.400. Pouco mais de nove salários mínimos.
Ao fixar o novo mínimo em R$ 260, valor que não paga a fumaça de três "Esplendidos" (R$ 288), a feitoria petista deixou agoniada a tribo que acreditou no palanfrório redentor da campanha eleitoral. Na segunda-feira, porém, o presidente se explicou.
"Tivemos o cuidado de dar o reajuste da inflação e um pouquinho a mais", disse Lula no rádio. "Com a preocupação de que, em algum momento, vamos criar condições para recuperar definitivamente o poder aquisitivo do mínimo. E vamos fazer isso com responsabilidade, porque não podemos aumentar a dívida da Previdência."
No mesmo dia, Dirceu declarou: "A gente tem que ter clareza das limitações. Sem perder a esperança, a fé, o otimismo. E sem deixar de ter audácia. E audácia neste momento é ter responsabilidade. Poderíamos ter dado R$ 300, mas teríamos um impacto de R$ 12 bilhões nos gastos públicos".
As palavras de Lula e Dirceu repercutiram muito bem entre os tapuias. O ressentimento deu lugar à satisfação de estar contribuindo para o equilíbrio orçamentário do governo. Disseminou-se a certeza de que a vida nas ocas vai melhorar consideravelmente.
A tribo do mínimo crê no patriotismo do homem branco. Acostumados a receber em reais, o caixa do supermercado, o dono do armazém e o feirante haverão de aceitar pagamentos na moeda da "responsabilidade". Com uma dose de "esperança", a nova unidade monetária garantirá o rancho do mês. Com uma pitada de "fé", vai sobrar troco.
Tomados de súbita "audácia", os sem-Cohiba farão fila nos guichês bancários. Terão, não há dúvida, crédito automático. Tomarão empréstimos com prazos a perder de vista. A banca há de fechar os olhos para a ausência de garantias reais, compreendendo as "limitações" momentâneas de Brasília. Não lhe falta gordura.
Cevadas pelos juros da administração FHC, as tesourarias das casas bancárias seguem inchando sob Lula. Em 2002, último ano do tucanato, a rentabilidade média da banca foi de 24,5%. Um assombro se comparada à taxa média de 5,6% dos setores não-financeiros (indústria, comércio e serviços).
No ano de despedida da era Malan, o lucro das quatro maiores casas bancárias privadas do país roçou os R$ 7 bilhões. Abre parênteses: Malan foi promovido na última quarta-feira ao posto de presidente do conselho de administração do Unibanco. É justo. Muito justo. Justíssimo. Fecha parênteses.
A festa seguiu animada no ano de estréia da era Palocci. Sozinho, o Bradesco registrou em 2003 lucro de R$ 2,3 bilhões. O Itaú cravou o maior lucro da história do sistema financeiro nacional: R$ 3,1 bilhões.
2004 também promete. Na mesma segunda-feira em que Lula e Dirceu falavam da "responsabilidade" que inspirou a subida módica do mínimo, o Bradesco comemorava lucros de R$ 608,7 milhões no primeiro trimestre. Na terça, o Itaú celebrava lucro de R$ 876 milhões no mesmo período. Uma beleza.
Difícil enxergar no horizonte o dia em que serão criadas as "condições" para a "recuperação definitiva do mínimo". Tampouco é fácil adivinhar a data em que será recuperado o nível de emprego.
Futurologia não é o forte do ex-PT. No início de sua gestão, o petismo previa que a economia do país cresceria no mínimo 3%. No ocaso de 2003, quando a ruína do primeiro ano já havia produzido 2,5 milhões de desempregados nas seis maiores regiões metropolitanas brasileiras, a equipe de Palocci estimava taxa mais modesta: 0,4%. Otimista, Guido Mantega (Planejamento) apostava em 0,8%.
Entre o impensável e o inadmissível, prevaleceu o inacreditável. Na frieza dos números reais, o PIB nacional decresceu 0,2%. No alvorecer de 2004, inaugurou-se nova temporada de apostas. O governo difunde agora previsões de crescimento anual que oscilam entre 3% e 3,5%.
Se Palocci, Mantega, Lula ou Dirceu precisassem vender um carro usado, talvez não aparecesse brasileiro disposto a comprá-lo. Por sorte, utilizam-se de automóveis oficiais. Contam, de resto, com a tradicional paciência dos tapuias. A tribo desenvolveu uma estranha vocação para a espera.
Protagonista na hora da eleição, o brasileiro do mínimo habituou-se ao papel de figurante das fases pós-eleitorais. Resignados com a morte do humanismo, os sem-Cohiba continuam esperando a hora de entrar em cena. Vão esperar. E esperar. E esperar. E esperar...


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