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LANTERNA NA POPA
Reflexões sobre o desenvolvimento
ROBERTO CAMPOS
Já foi quase uma obsessão, faz
uma geração. Mas hoje parece
que o tema do "desenvolvimento" perdeu um pouco o charme
político. E a substância teórica
há muito tempo está meio engasgada na garganta, ou, melhor dito, na cabeça dos praticantes. O pensamento econômico dominante há mais de um século ("hegemônico", digamos,
em homenagem aos amigos da
esquerda) procurou concentrar-se na estrutura lógica, nos mecanismos e no tratamento formal, preferentemente de tipo
quantitativo. Isso vem mais ou
menos desde a famosa "methodenstreit", polêmica que começou nos centros germânicos no
final do século passado. Essa
polêmica, apesar das tentativas
conciliatórias de Max Weber,
acabou por nocaute técnico a
favor dos formalistas matematizantes, contra os historicistas,
institucionalistas e outros mais
versados na sociologia ou na
antropologia do que nas equações.
Pensando bem, havia razões
para o desconforto. A preocupação com o desenvolvimento
contrabandeava uma série de
"por quês" - ou seja, projetos
pelo futuro afora e receitas para
cortar sob medida o terno econômico da sociedade. Trata-se
de um tipo de indagação que
costuma deixar as mentes científicas um tanto mal à vontade.
É relativamente fácil, olhando
no retrovisor, encontrar explicações defensáveis para quase
tudo o que aconteceu. Mas, tal
como em matéria de previsão
meteorológica, os prognósticos
econômicos valem somente por
períodos curtos, e sempre no
mais ou menos. A maneira de
pensar do homem moderno, daquele homem inventado no Ocidente a partir do enxerto da racionalidade grega, com a visão
de transcendência judaico-cristã, está em geral concentrada
em procurar "causas". Pode ser
algo mais sofisticado, é claro,
como por exemplo imaginar
"variáveis". Mas, no final das
contas, a pergunta é mesmo "o
que causa o quê?".
A complicação que um dia a
gente acaba por descobrir é que
o mundo pode não ter uma ordem causal simples. Pode ser
"caótico", ou "quase periódico",
ou simplesmente "não tratável
de forma analítica". Isso por
causa daquilo que, no jargão, se
chama de "não-linearidades".
Não chega a ser um bicho de sete cabeças. Todos nós convivemos no quotidiano com uma infinidade de fenômenos desse tipo: a fumaça que sobe de um cigarro, o comportamento das
ondas na ressaca ou, para citar
um assunto mais "quente", os
movimentos das Bolsas, nos
quais nunca se pode prever exatamente onde e quando vai estar o ponto de inflexão.
De modo que surgiu uma vasta literatura, tecnicamente
muito interessante, mas bastante árida e, para o leigo, provavelmente decepcionante, pela
falta de sumo concreto para
misturar nas receitas de política
econômica. Mas não se assuste o
leitor. Não vou falar para profissionais do ramo. Acontece
que, recentemente, certas questões relativas aos fenômenos de
pobreza reacordaram o interesse em alguns temas das passadas polêmicas do desenvolvimento. É uma pergunta natural, sem dúvida, a de procurar
saber por que alguns países ou
pessoas ficaram ricos, enquanto
outros continuaram pobres, e
por que alguns andam mais depressa do que outros na vida.
No começo, parecia simples,
porque tínhamos herdado do
século 19 a noção de que o "progresso" era uma linha contínua
que não acabava mais. Até
Marx acreditava que os mais
atrasados iriam repetir a evolução dos mais adiantados, que os
haviam precedido. Não tardariam a aparecer uns que achavam que os pobres eram pobres
porque explorados pelos ricos
- uma idéia típica de uma fase
de "subdesenvolvimento do
subdesenvolvimento", que ficou
fixada muito tempo na América
Latina, continente que é um
privilegiado refúgio de idiotas.
Talvez outro dia falaremos nisso, em ambiente asséptico, porque há riscos graves para a saúde mental.
Voltemos às coisas sérias. Depois, quando Keynes, relembrando Malthus, mostrou que a
economia expressa em termos
monetários podia provocar instabilidades na economia "real"
(coisa que os "neoclássicos" não
consideravam significativa),
pareceu que se tinha encontrado um mecanismo simples para
fazer os países crescerem: criar
"demanda agregada", injetando dinheiro nos períodos de baixa e invertendo a mágica para
apertar a torneira inflacionária. Até certo ponto, e em dadas
condições, isso funciona. Nem
sempre, pois há casos como o do
Japão atual, em que o governo
injeta dinheiro e reduz juros
sem conseguir reativar a economia. É a "armadilha da liquidez". Nos países em desenvolvimento, o problema mais frequente é o da inflação. Se abrir
a torneira monetária é fácil nas
fases de recessão, nada mais difícil do que botar focinheira nos
políticos gastadores para abater
a inflação.
Logo depois da guerra, um
economista, E. Domar, criou
um modelo muito fácil para explicar as relações entre recessões
de curto prazo e investimento
nos Estados Unidos. Para simplificar, supôs que a capacidade
de produção seria proporcional
ao estoque de capital -a famosa relação capital/produto. Se a
relação for de 4 para 1, por
exemplo, para crescer a 5% ao
ano, bastaria ter 20% de formação de capital. Onze anos mais
tarde, Domar desautorizou o
seu modelo, por causa de "dúvidas de consciência". O que não
impediu que se começasse a falar no "hiato de financiamento"
e calcular a ajuda internacional
para enchê-lo a partir da "relação capital/produto incremental" (aquele adicional a acrescentar). O modelo de "hiato de
financiamento" falhou em 82
países, de um total de 88 que receberam ajuda. Mas, como é fácil de calcular, ainda tem sido
usado por algumas agências internacionais.
Muitos outros sugeriram novas teorias. Robert Solow introduziu a "produtividade total
dos fatores", incluindo os efeitos
da tecnologia. Com alguns complicadores, é mais ou menos a
ortodoxia atual. Facilita compreender que as pessoas respondem a incentivos - o que muita
gente, sobretudo os governos,
acha que compreende, mas logo
esquece. Gostam muito de
obras, que são moeda eleitoral,
mas descuidam de manter em
bom funcionamento escolas,
hospitais, estradas, de sorte que
o investimento é neutralizado
pela ineficiência.
A verdade é que não há mágica. Um bom código comercial,
uma Justiça rápida e previsível,
um governo que não dê calotes e
não deixe os MSTs da vida invadirem propriedades privadas valem por montanhas de investimentos. Um governo que fique
fazendo visagens bobas, tipo
"trocar o sofá", pode atrasar
mais a economia do que os mais
malvados concorrentes estrangeiros.
O Brasil tem crescido, mantendo-se bem no 8º ou 9º lugar do
mundo em termos de produção
global. Mas a produção por habitante é pequena e sobretudo
mal distribuída. Alguns países
de menor renda mostram avanços em saúde, escolaridade e expectativa de vida superiores aos
nossos. De modo geral, entretanto, há sempre um núcleo mais rico, cercado de pobreza. O tamanho do núcleo é que varia. Na
Europa Ocidental, é relativamente pequeno, nos Estados
Unidos, um pouco maior, mas
tudo fica mais ou menos entre
5% a 20% de "pobres". Ficamos
a meio caminho, já uma grande
nação moderna e industrializada, com um PIB da ordem de
US$ 1,04 trilhão (se medido pela
paridade do poder de compra).
A metade de cima da laranja terá, per capita, algo mais de US$
11 mil, e a metade de baixo, pouco mais de US$ 1.500. Fatores
coadjuvantes? Furor reprodutivo dos de baixo, inépcia gerencial do cocuruto dos de cima, o
governo. A solução é mudar a
cabeça, e não necessariamente
cortá-la, como se fez na Revolução Francesa.
Mudar a cabeça significa preocuparmo-nos menos com falsos
inimigos, como o capitalismo,
que ainda não praticamos, e o
neoliberalismo, que ainda não
chegou à nossa cultura dirigista.
Os problemas reais são como aumentar a poupança interna e como dar educação básica à mão-de-obra. Isso não exige governo
grande nem impostos pesados.
Basta a velha receita smithiana:
Governo pequeno, impostos baixos, liberdade empresarial e
abertura à competição internacional.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento
(governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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