São Paulo, domingo, 9 de maio de 1999

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LANTERNA NA POPA
Reflexões sobre o desenvolvimento

ROBERTO CAMPOS

Já foi quase uma obsessão, faz uma geração. Mas hoje parece que o tema do "desenvolvimento" perdeu um pouco o charme político. E a substância teórica há muito tempo está meio engasgada na garganta, ou, melhor dito, na cabeça dos praticantes. O pensamento econômico dominante há mais de um século ("hegemônico", digamos, em homenagem aos amigos da esquerda) procurou concentrar-se na estrutura lógica, nos mecanismos e no tratamento formal, preferentemente de tipo quantitativo. Isso vem mais ou menos desde a famosa "methodenstreit", polêmica que começou nos centros germânicos no final do século passado. Essa polêmica, apesar das tentativas conciliatórias de Max Weber, acabou por nocaute técnico a favor dos formalistas matematizantes, contra os historicistas, institucionalistas e outros mais versados na sociologia ou na antropologia do que nas equações.
Pensando bem, havia razões para o desconforto. A preocupação com o desenvolvimento contrabandeava uma série de "por quês" - ou seja, projetos pelo futuro afora e receitas para cortar sob medida o terno econômico da sociedade. Trata-se de um tipo de indagação que costuma deixar as mentes científicas um tanto mal à vontade. É relativamente fácil, olhando no retrovisor, encontrar explicações defensáveis para quase tudo o que aconteceu. Mas, tal como em matéria de previsão meteorológica, os prognósticos econômicos valem somente por períodos curtos, e sempre no mais ou menos. A maneira de pensar do homem moderno, daquele homem inventado no Ocidente a partir do enxerto da racionalidade grega, com a visão de transcendência judaico-cristã, está em geral concentrada em procurar "causas". Pode ser algo mais sofisticado, é claro, como por exemplo imaginar "variáveis". Mas, no final das contas, a pergunta é mesmo "o que causa o quê?".
A complicação que um dia a gente acaba por descobrir é que o mundo pode não ter uma ordem causal simples. Pode ser "caótico", ou "quase periódico", ou simplesmente "não tratável de forma analítica". Isso por causa daquilo que, no jargão, se chama de "não-linearidades". Não chega a ser um bicho de sete cabeças. Todos nós convivemos no quotidiano com uma infinidade de fenômenos desse tipo: a fumaça que sobe de um cigarro, o comportamento das ondas na ressaca ou, para citar um assunto mais "quente", os movimentos das Bolsas, nos quais nunca se pode prever exatamente onde e quando vai estar o ponto de inflexão.
De modo que surgiu uma vasta literatura, tecnicamente muito interessante, mas bastante árida e, para o leigo, provavelmente decepcionante, pela falta de sumo concreto para misturar nas receitas de política econômica. Mas não se assuste o leitor. Não vou falar para profissionais do ramo. Acontece que, recentemente, certas questões relativas aos fenômenos de pobreza reacordaram o interesse em alguns temas das passadas polêmicas do desenvolvimento. É uma pergunta natural, sem dúvida, a de procurar saber por que alguns países ou pessoas ficaram ricos, enquanto outros continuaram pobres, e por que alguns andam mais depressa do que outros na vida.
No começo, parecia simples, porque tínhamos herdado do século 19 a noção de que o "progresso" era uma linha contínua que não acabava mais. Até Marx acreditava que os mais atrasados iriam repetir a evolução dos mais adiantados, que os haviam precedido. Não tardariam a aparecer uns que achavam que os pobres eram pobres porque explorados pelos ricos - uma idéia típica de uma fase de "subdesenvolvimento do subdesenvolvimento", que ficou fixada muito tempo na América Latina, continente que é um privilegiado refúgio de idiotas. Talvez outro dia falaremos nisso, em ambiente asséptico, porque há riscos graves para a saúde mental.
Voltemos às coisas sérias. Depois, quando Keynes, relembrando Malthus, mostrou que a economia expressa em termos monetários podia provocar instabilidades na economia "real" (coisa que os "neoclássicos" não consideravam significativa), pareceu que se tinha encontrado um mecanismo simples para fazer os países crescerem: criar "demanda agregada", injetando dinheiro nos períodos de baixa e invertendo a mágica para apertar a torneira inflacionária. Até certo ponto, e em dadas condições, isso funciona. Nem sempre, pois há casos como o do Japão atual, em que o governo injeta dinheiro e reduz juros sem conseguir reativar a economia. É a "armadilha da liquidez". Nos países em desenvolvimento, o problema mais frequente é o da inflação. Se abrir a torneira monetária é fácil nas fases de recessão, nada mais difícil do que botar focinheira nos políticos gastadores para abater a inflação.
Logo depois da guerra, um economista, E. Domar, criou um modelo muito fácil para explicar as relações entre recessões de curto prazo e investimento nos Estados Unidos. Para simplificar, supôs que a capacidade de produção seria proporcional ao estoque de capital -a famosa relação capital/produto. Se a relação for de 4 para 1, por exemplo, para crescer a 5% ao ano, bastaria ter 20% de formação de capital. Onze anos mais tarde, Domar desautorizou o seu modelo, por causa de "dúvidas de consciência". O que não impediu que se começasse a falar no "hiato de financiamento" e calcular a ajuda internacional para enchê-lo a partir da "relação capital/produto incremental" (aquele adicional a acrescentar). O modelo de "hiato de financiamento" falhou em 82 países, de um total de 88 que receberam ajuda. Mas, como é fácil de calcular, ainda tem sido usado por algumas agências internacionais.
Muitos outros sugeriram novas teorias. Robert Solow introduziu a "produtividade total dos fatores", incluindo os efeitos da tecnologia. Com alguns complicadores, é mais ou menos a ortodoxia atual. Facilita compreender que as pessoas respondem a incentivos - o que muita gente, sobretudo os governos, acha que compreende, mas logo esquece. Gostam muito de obras, que são moeda eleitoral, mas descuidam de manter em bom funcionamento escolas, hospitais, estradas, de sorte que o investimento é neutralizado pela ineficiência.
A verdade é que não há mágica. Um bom código comercial, uma Justiça rápida e previsível, um governo que não dê calotes e não deixe os MSTs da vida invadirem propriedades privadas valem por montanhas de investimentos. Um governo que fique fazendo visagens bobas, tipo "trocar o sofá", pode atrasar mais a economia do que os mais malvados concorrentes estrangeiros.
O Brasil tem crescido, mantendo-se bem no 8º ou 9º lugar do mundo em termos de produção global. Mas a produção por habitante é pequena e sobretudo mal distribuída. Alguns países de menor renda mostram avanços em saúde, escolaridade e expectativa de vida superiores aos nossos. De modo geral, entretanto, há sempre um núcleo mais rico, cercado de pobreza. O tamanho do núcleo é que varia. Na Europa Ocidental, é relativamente pequeno, nos Estados Unidos, um pouco maior, mas tudo fica mais ou menos entre 5% a 20% de "pobres". Ficamos a meio caminho, já uma grande nação moderna e industrializada, com um PIB da ordem de US$ 1,04 trilhão (se medido pela paridade do poder de compra). A metade de cima da laranja terá, per capita, algo mais de US$ 11 mil, e a metade de baixo, pouco mais de US$ 1.500. Fatores coadjuvantes? Furor reprodutivo dos de baixo, inépcia gerencial do cocuruto dos de cima, o governo. A solução é mudar a cabeça, e não necessariamente cortá-la, como se fez na Revolução Francesa.
Mudar a cabeça significa preocuparmo-nos menos com falsos inimigos, como o capitalismo, que ainda não praticamos, e o neoliberalismo, que ainda não chegou à nossa cultura dirigista. Os problemas reais são como aumentar a poupança interna e como dar educação básica à mão-de-obra. Isso não exige governo grande nem impostos pesados. Basta a velha receita smithiana: Governo pequeno, impostos baixos, liberdade empresarial e abertura à competição internacional.


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).




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