São Paulo, segunda-feira, 10 de abril de 2000


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ENTREVISTA
Afirmação é do crítico Antonio Candido
"Brasil não cultivou pensamento radical"


do Painel


A intenção de Lula ao conferir ao crítico literário Antonio Candido a responsabilidade pela organização do seminário "Socialismo e Democracia" foi de dar ao encontro uma legitimidade que dificilmente conseguiria se a tarefa fosse delegada a qualquer outro quadro do partido.
Aos 80 anos, Antonio Candido, autor do clássico a "Formação da Literatura Brasileira" (1959), "Tese e Antítese" (1964) e "Literatura e Sociedade" (1965), tem o respeito e a admiração unânimes do PT -e para além dele.
Fundador do partido, Candido, socialista convicto, está distante da cozinha partidária e alheio às disputas internas entre as correntes. Evita, já há vários anos, aparecer em público ou dar entrevistas. Discreto, abre poucas exceções, sempre por causas que considera relevantes.
Em entrevista à Folha, Candido afirma que o socialismo é "uma das maiores forças humanizadoras do mundo contemporâneo". Diz também que "o Brasil não tem pensamento radical próprio de real importância".
(FERNANDO DE BARROS E SILVA)

Folha - O que, pessoalmente, o sr. espera desses seminários do PT sobre o socialismo?
Antonio Candido -
Antes de responder à pergunta, quero fazer um esclarecimento: estou sendo entrevistado porque vocês sabem que o Lula me pediu para pensar na organização desses seminários. Eu procurei atuar como coordenador, mas a contribuição essencial foi dos meus companheiros: Francisco de Oliveira, Paul Singer (economistas e professores da USP) e Paulo Vannuchi (assessor de Lula).
Pessoalmente, espero o que com certeza esperam também Lula e os companheiros que trabalham comigo no projeto: abrir uma fase de debates sinceros e aprofundados sobre o socialismo. Socialismo é um termo complexo, que abrange várias posições e teorias. E, como é o pressuposto doutrinário do PT, convém debatê-lo não apenas nas discussões internas do dia-a-dia partidário, mas de modo mais sistemático e visível.

Folha - O socialismo é hoje uma palavra um tanto estigmatizada, e os que se dizem vinculados de alguma forma às suas aspirações são acusados de obsoletos. O que significa levantar agora essa discussão, suscitada pelo Instituto Cidadania a pedido de Lula?
Candido -
Creio que o socialismo, mais do que corpo doutrinário deste ou daquele partido, é uma das maiores forças humanizadoras do mundo contemporâneo, e, neste sentido, está vivo, apesar de fracassos aqui e ali.
Os próprios adversários de boa-fé devem concordar que sem ele e sem outros movimentos paralelos não haveria legislação social, direitos do trabalhador etc.. Além dele, penso no anarquismo, em certas formas de cooperativismo e de sindicalismo, no cristianismo social e até em tendências como o georgismo. Mesmo sem chegar ao poder, e mesmo cometendo erros, o socialismo vem conseguindo há quase dois séculos tornar mais suportável a condição dos trabalhadores, de tal forma que os detentores dos meios de produção e as classes dominantes em geral vêm sendo obrigados a fazer concessões que não fariam por sua própria iniciativa.
Visto assim, ele tem obtido vitórias constantes em benefícios de todos, porque elas contribuem para humanizar a sociedade. Veja o caso do Vaticano, que era tradicionalmente uma fortaleza aliada aos poderes do mundo. Foi a onda das reivindicações sociais que chegou até lá e levou Leão 13 a redigir a encíclica "Rerum Novarum", a partir da qual a atitude da igreja foi se modificando até chegar em nossos dias a ter muitos setores empenhados na luta pelos oprimidos , os excluídos, as vítimas da dureza capitalista e das prepotências.
À vista disso, é lógico supor o seguinte: se mesmo combatido ou desfigurado o socialismo conseguiu humanizar tanto a sociedade capitalista, o que não conseguirá se for predominante?

Folha - Qual socialismo?
Candido -
O próprio título dos seminários diz que a nossa orientação é a do socialismo democrático. E aqui entra um problema difícil, que é o da oposição polar entre economia de mercado e economia planificada. Como soluções teoricamente extremadas, temos de um lado teorias liberais do capitalismo que preconizam o jogo livre da concorrência sem limite, coisa que obviamente nunca existiu, pois o que há na prática são as coligações do capital que reduzem a bem pouco a liberdade. De outro lado temos a estatização total para chegar à comunhão dos bens, coisa que também nunca existiu, e, quando tentou existir, tornou-se uma outra maneira de cercear da liberdade. A dura lição do século 20 obriga a rejeitar esses extremos e estudar a possibilidade de chegar a formas capazes de harmonizar o mais possível a liberdade com os estímulos econômicos que levam a produzir riquezas. Mas isso só pode ser tentado se o alvo for a distribuição mais equitativa dos bens.

Folha - O "post-scriptum" do seu prefácio, na 18ª edição de "Raízes do Brasil", do seu amigo e historiador Sergio Buarque de Holanda, menciona um "radicalismo potencial das classes médias brasileiras". Seria preciso retomar essa idéia no debate nacional?
Candido -
O que costumo dizer e escrever é que o Brasil não tem tido pensamento radical próprio de real importância, ao contrário de outros países latino-americanos. E que há um curioso radicalismo esporádico infiltrado em autores liberais e até conservadores, formando um conjunto que pode ser de interesse. É o caso de Joaquim Nabuco na fase da propaganda abolicionista; é o caso dos pontos de vista de Alberto Torres com relação ao racismo; é o caso dos fermentos renovadores da obra de Gilberto Freyre; é o caso da obra de Manoel Bonfim na fase inicial.
Em Sergio Buarque de Holanda, no fim de "Raízes do Brasil", há um clara manifestação disso. Num tempo em que os melhores diziam que o progresso viria graças a uma espécie de tutela esclarecida das elites guiando o povo, ele deu indicações de que cabia a este assumir a iniciativa. A conclusão é que nas classes médias brasileiras há fermentos que tanto podem levar a posições de direita quanto de esquerda. Cabe a uma política esclarecida puxar para fora as tendências mais avançadas.

Folha - O PT hoje está afastado dos movimentos populares que o originaram. Como é possível recuperá-los?
Candido -
Não sei se tem razão. O PT sempre foi um partido integrador, depois do breve começo de cunho sindical puro. Ele possui várias tendências, que a meu ver são fator positivo de dinamismo, enquanto não extravasam os quadros básicos; e abrange militantes e simpatizantes de várias origens culturais e sociais.
Isso produz alternâncias, com momentos nos quais sobressaem intelectuais de classe média e outros nos quais os trabalhadores rurais e urbanos vêm para o primeiro plano.
Mas isso é sinal de abertura e prova que o PT corresponde ao nosso tempo cheio de reformulações. Há nele pano para muitas mangas.


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