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ENTREVISTA DA 2ª/MARCOS FERNANDES
"No exterior, regras claras inibem abuso com cartões"
Economista diz que Brasil deve se inspirar em códigos de conduta de países que usam cartões corporativos, como a Austrália
FERNANDO BARROS DE MELLO
DA REDAÇÃO
O DIRETOR do curso de economia de São
Paulo da FGV diz que os cartões corporativos são parte de uma "doença mais grave", que é a falta de fiscalização e de informação sobre o Estado brasileiro. O autor de "Ética e
Economia" (Campus) e "A Economia Política da Corrupção do Brasil" (Senac) estuda "governos eletrônicos". Por isso avalia o uso dos cartões no mundo.
FOLHA - Cartão corporativo é ruim?
MARCOS FERNANDES GONÇALVES -
Não. Cartão corporativo é bom,
seja numa empresa ou no governo. É muito mais fácil executar pagamentos menores por
meio de cartão de crédito. Além
disso, gera mais transparência.
Anos atrás, dois executivos ingleses de uma empresa gastaram uma quantidade enorme
num jantar. Foram demitidos
assim que o gasto foi apontado.
Eu vejo o escândalo dos cartões como uma manifestação
epidérmica de uma doença
mais grave, que é o fato de o Estado brasileiro estar fora de
controle, pela falta de fiscalização e informações. A "viúva", o
Tesouro Nacional, é a última a
saber. Por outro lado, esse escândalo mostra confusões que
brotaram na opinião pública.
FOLHA - Quais?
GONÇALVES - O cartão corporativo não é culpado pela fraude,
ele é a solução para combater
esse tipo de corrupção, porque
gera automaticamente a transparência e acaba com essa história de nota, recibo etc. Todo
mundo sabe que é fácil pegar,
por exemplo, um recibo superfaturado em um táxi, uma prática imoral. Se é cartão de crédito, aparece onde gastou e o valor exato. Ao surgir uma conta
estranha, fiscaliza-se. Não por
acaso, o escândalo só veio à tona porque os gastos ficaram registrados. Mostrou a importância de um instrumento como o
Portal da Transparência.
Mas há confusão sobre o que
é um escândalo e o que não é.
No caso de um jantar com uma
comitiva chinesa, por exemplo,
gastar R$ 500 ou R$ 1.000 é
normal. Você está recebendo
pessoas que representam um
governo estrangeiro.
O ponto crítico é o gasto na
mesa de bilhar, os saques altíssimos, os gastos sigilosos que
ninguém tem idéia do que foi
feito ou ter um só cartão gastando R$ 500 mil por ano. Aí é
que estão os absurdos.
Os saques são um ponto crucial, porque, nesse caso, o cartão pode ser fonte para caixa
dois. De grão em grão a galinha
enche o papo, de dez em dez
reais se faz 1 milhão.
FOLHA - O que outros países que
usam cartão podem ensinar?
GONÇALVES - A primeira questão é fazer um manual claro sobre como usar o cartão. Depois,
obrigar os funcionários que vão
usar a assinar um termo de
compromisso onde está dito
que eles vão obedecer o que está no código e que sabem que,
se não cumprirem, podem ser
processados judicialmente.
Também é preciso esclarecer
os usos e, para isso, aulas são
dadas a quem tem o cartão. Se
fosse assim no Brasil, ninguém
poderia dizer que não sabia,
que não leu o manual. Mas o governo não tem ainda um manual. Há países onde códigos de
conduta detalham como usar o
cartão. Os melhores exemplos
são Austrália e Nova Zelândia,
que estão anos-luz à frente.
FOLHA - Por quê?
GONÇALVES - Nos anos 90, eles
fizeram grandes reformas no
setor público, informatizando
praticamente tudo, o que gerou
um subproduto fundamental,
mais transparência e controle
sobre todos os níveis do governo. O mais importante é ver como os gastos são executados.
Eles criaram governos eletrônicos. Na Austrália, todos os
protocolos do governo são informatizados, os processos do
Judiciário circulam virtualmente de departamento para
departamento. Há até mesmo
informações dizendo se o funcionário público está aparecendo no trabalho. Isso gera democracia eletrônica, que não é só
apertar um número na urna,
mas democracia como melhor
sistema de controle sobre os
burocratas e os políticos.
FOLHA - Isso ocorre nos cartões?
GONÇALVES - Sim. As faturas são
públicas e on-line. A compra do
funcionário vai automaticamente para a internet. Nesses
países, quem tem cartão está no
primeiro e no segundo escalão,
ou seja, ministros, assessores,
mas também o equivalente a
governadores e alguns burocratas de ministérios que podem
fazer compras específicas.
O manual de conduta deixa
claro como e onde pode ser usado: viagens, jantares, alimentação, combustível e gastos inesperados. Só que existem tetos
fixados para gastos e para saques em dinheiro, que varia entre regiões.
Outro ponto é que os gastos
inesperados ou pequenos gastos não dão problema, pois o
funcionário é obrigado a provar
imediatamente por que o gasto
foi inesperado e isso também é
publicado na internet. Quebrou um carro? Prove. Teve
problema de saúde? Prove.
FOLHA - Por que o mecanismo é
eficiente na Austrália?
GONÇALVES - Porque o superior
é obrigado a ficar de olho. Um
funcionário que responde ao
superior só pode realizar saques com cartão se autorizado.
Mais do que isso, se um subordinado faz um gasto indevido, o superior também é culpado. Uma regra onde o chefe é o direto responsável pelas ações
do chefiado cria incentivos naturais ao controle. Nesses países, está na lei que o chefe é o
imediato responsável juridicamente pelos gastos.
No ministério australiano, se
um chefe-de-gabinete faz um
gasto indevido, o responsável é
o ministro. O burocrata abaixo
do chefe-de-gabinete faz gasto
indevido? O responsável é o
chefe-de-gabinete. É claro que
o subalterno também é punido,
mas, no limite, gastos pouco razoáveis de um ministro podem
derrubar até mesmo o primeiro-ministro. Como resultado, o
superior fica no cangote do funcionário; está todo mundo com
o rabo preso, no bom sentido.
FOLHA - Há outros países que estão
mais avançados no uso do cartão ?
GONÇALVES - A experiência dos
outros países é mais recente. A
França tem um bom sistema,
com manual e limite para saques e gastos. Os cartões estão
nas mãos do presidente, do primeiro-ministro e dos ministros, além de alguns assessores.
Mas não tem magia. Lá a informação é totalmente pública,
na internet. A ex-primeira-dama Cecília Sarkozy abriu mão
do cartão não porque fez gastos
indecentes, mas porque a vida
privada dela ficava explicitada.
Ela fez uma escolha.
Eu pesquisei cartões corporativos exaustivamente e podem até existir outros países
que usem, mas não divulgam as
informações na internet, um
pressuposto básico do sistema.
FOLHA - Nos países citados, o controle como o feito pela CGU no Brasil
é importante?
GONÇALVES - Sim, mas a questão é que não é o único controle. Austrália e Nova Zelândia
têm auditoria anual das contas
de todo o governo, mas os ministérios fazem auditorias internas muito sérias.
O controle francês é feito por
auditoria interna nos três Poderes e uma auditoria externa,
feita por uma espécie de Tribunal de Contas.
É interessante que Tribunal
de Contas como conhecemos
só existe no Brasil e é uma boa
idéia, só que mal utilizada. Em
São Paulo, é complicado o governador indicar conselheiros
para o TCE. Agora, o Tribunal
de Contas da União faz um trabalho sério.
FOLHA - Como controlar no Brasil?
GONÇALVES - Sou a favor de auditoria de empresas privadas
no governo. No caso dos cartões, se quisesse, o governo poderia fazer um estudo para calcular quanto se gasta em média em uma viagem, com hotel, alimentação. Poderia fazer por cidade brasileira ou média nacional. Depois, um cálculo para regulamentar saques para gastos
imprevistos, que nunca passa
de 20% a 30% do total. Emergência pressupõe valores modestos. Assim, determina-se tetos e limites e, conseqüentemente, quem extrapola limites.
FOLHA - O que acha dos gastos sigilosos com cartões do governo?
GONÇALVES - Existem gastos
que não podem ser mesmo publicados, como gastos em áreas
estratégicas militares, exemplo
do submarino nuclear brasileiro. Ou então questões geopolíticas. Mas, em qualquer país razoável, uma comissão bicameral, Câmara e Senado, analisa e
acompanha tais gastos.
Agora, confidencialidade
com gasto em jantar, pagamento de hotel, compra de carne
para o presidente não tem o
menor cabimento. O problema
central não é a carne para o presidente ser risco à segurança,
mas gastos sem transparência.
FOLHA - Há diferença entre o cartão de débito usado em São Paulo e
o cartão de crédito federal?
GONÇALVES - A diferença prática é financeira, porque no cartão de crédito você paga depois,
enquanto o de débito é um cheque eletrônico e o dinheiro sai
no ato da conta do governo. No
governo de São Paulo há uma
conta para esses gastos e há limite para gastos de cada cartão.
Mas a rigor não há muita diferença. O mais importante é a
transparência, essência do governo eletrônico. A sociedade
ficou de olho nos cartões e isso
ficará. Cartão de crédito do governo não era muito fiscalizado. E é fácil fiscalizar.
FOLHA - Governo eletrônico é caro?
GONÇALVES - Não! É barato,
porque elimina papel, recibos,
notas, diminui a oportunidade
de corrupção e o custo da transação. Isso traz economia para
o Estado. O pior (ou melhor) é
que governo eletrônico é uma
invenção brasileira, criada com
o sistema de licitação eletrônico feito no governo Mario Covas em São Paulo. Isso foi levado depois para outros países.
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