São Paulo, domingo, 12 de junho de 2005

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NO PLANALTO

Sobre futebol, política, Rembrant, ópera e lama

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

O que faltou à seleção brasileira no jogo contra a equipe da argentina foi um zagueiro à antiga. Do tipo que mira o calcanhar do adversário nas primeiras entradas. Só para deixar claro quem manda nos arredores da grande da área.
Juízes de futebol raramente expulsam jogadores em início de jogo. De modo que a zaga dispõe de tolerância de uns cinco minutos para impor, na marra, a sua autoridade. O Brasil pegou leve. E sobreveio o desastre: tomou três gols só no primeiro tempo.
O presidente Lula cometeu o mesmo erro. Escalado por 52 milhões de votos, entrou em campo em 2003 com moral para impor a sua vontade nos primeiros cem dias de gestão. Sem desdenhar do Congresso, poderia ter demarcado o seu território.
Preferiu compor a distribuir as caneladas protocolares. Jeffersons, Janenes, Valdemares e outros azares gostaram do jogo. E o governo amarga uma goleada constrangedora. Lula perde gradativamente a reverência dos torcedores. Muitos já abandonam o estádio.
Na última terça-feira, acossado pelas vaias que ecoam da arquibancada, o presidente discursou na conferência de combate à corrupção, promovida pela ONU. "Tenho uma biografia a preservar, uma história de décadas em defesa da ética na política", disse. A frase chega com dois anos e meio de atraso.
É difícil, a esta altura, apagar a impressão de que Lula preferiu honrar as alianças esdrúxulas mais do que o próprio currículo. Identifica-se agora mais com o pragmatismo do PTB, do PL e do PP do que com os pruridos do velho PT. Mandou a posteridade às favas. A pretexto de saciar os apetites dos "300 picaretas", subverteu até a semântica. Apelidou o cinismo de amadurecimento.
De resto, semeou no inconsciente de seus eleitores uma incômoda pergunta: Se o sindicalismo de São Bernardo e o cangaço parlamentar seguem a mesma cartilha, de onde virá, afinal, a salvação? Eis a resposta: ao sacrificar a pseudodiferença heróica, o ex-PT informou ao país que ninguém se salva. A superioridade presumida integrou-se à abjeção. Vigora o regime da culpa compartilhada. A integridade rendeu-se à cumplicidade.
O retrato presidencial que pende da parede de todas as repartições públicas não é o Rembrandt que todos supunham. As pessoas olham para ele de outra forma. Sob a cara simpática, debaixo da barba nevada, esconde-se a mesma desfaçatez de sempre.
Lula ensaia um improvável recomeço. Encomendou ao ministro Márcio Thomaz Bastos (Justiça) uma proposta de reforma política. Tenta fazer, em reação ao noticiário, aquilo que não fez por convicção. De novo, talvez seja tarde. O melado já escorre a cântaros. Está pela altura dos joelhos. A corrupção brasileira, que virara rotina na gestão FHC, converteu-se em emergência.
O governo deslizou para o vácuo moral. De agora em diante, tudo será epílogo para Lula. Fraco e acuado, o presidente, verá as suas boas intenções perderem-se nos desvãos de duas CPIs: a dos Correios e a do "mensalão".
A despeito da súbita notoriedade que granjearam, Delúbio Soares e Roberto Jefferson passarão aos livros de história do meio para o pé da página. Serão detalhes episódicos de uma encrenca maior: a triste degenerescência de Lula e do grão-petismo. No enredo da decadência, Delúbio e Jefferson são meros coadjuvantes.
Quem a essa altura ainda acredita que o presidente do PTB plantou apadrinhados de reputação duvidosa nos Correios e no Instituto de Resseguros do Brasil sem a anuência de José Dirceu, o chefão da Casa Civil a cujo crivo nenhuma nomeação escapa? Quantos ainda crêem que o tesoureiro do PT comprou simpatias no Congresso sem o conhecimento de Lula e Dirceu?
Trancado num apartamento funcional da Câmara, Jefferson refugiou-se em seus rancores. Sua boca verte fel. A cúpula do PTB ainda tenta convencê-lo a moderar o timbre, em nome do abrandamento da crise. O sucesso da empreitada não interessa ao país.
Diz-se que Jefferson está especialmente irritado com José Dirceu. Pois deve-se contar ao deputado que o ministro anda espalhando em Brasília que, como parlamentar, ele é um ótimo cantor de óperas -amador e desafinado. Vale tudo para estimular o intérprete de "Cuore Ingrato" a entoar em público a ária de provas que diz possuir. Do concerto de Jefferson depende o conserto da política nacional.
O governo está na bica de disputar uma partida digna das grandes finais. Vive-se aquele instante que antecede os jogos decisivos. O time se ajeita para a fotografia. Jefferson e Delúbio, braços cruzados, perfilam-se atrás, em pé. Lula, Dirceu e Cia. acomodam-se na frente, de cócoras. O apito inicial soará na próxima quarta-feira, durante o primeiro depoimento do presidente do PTB à Comissão de Ética da Câmara. Prepare o seu coração, caro torcedor. Se Jefferson não semitonar, vêm aí fortes emoções.

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