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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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JANIO DE FREITAS

Os domínios da impunidade

As atitudes mal contidas, no Brasil, da relatora da ONU para execuções sumárias tiveram dois efeitos não menos sumários: acentuaram uma crise institucional latente, entre o governo Lula e o Judiciário, e agravaram, para mal dos nossos males, a velha confusão conceitual em torno de impunidade, ação policial, criminalidade e demais temas correlatos.
Mas, apesar do já havido, só quando Asma Jahangir apresentar o seu relatório oficial, na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, será possível saber, acima de sua tumultuada inspeção por aqui, o que de fato propõe para ser feito no Brasil, a favor ou contra, pela ONU.
Sua antecipada idéia de recomendar a vinda de uma equipe para inspecionar o Poder Judiciário brasileiro, motivo do acirramento entre governo e magistrados, suscita dois problemas imediatos. O que significa e como poderia ser feita a "inspeção" de um Poder Judiciário? A par desta incógnita, e a motivá-la, Asma Jahangir atribuiria à chamada Justiça o alto índice de impunidade de policiais matadores e torturadores.
Daí ao embaralhamento de questões distintas, o governo, a partir do próprio Luiz Inácio Lula da Silva, foi menos de um passo. A sempre falada e nunca iniciada reforma do Judiciário é uma necessidade que não admite dúvida. Mas não é a sua falta que conduz à impunidade relacionada à violência, policial ou não. A fonte dessa impunidade sempre esteve no governo federal e nos governos estaduais: essa impunidade nasce nas polícias, nos inquéritos (quando chegam a existir) deformados por incapacidade, corrupção ou corporativismo policial.
No país onde é aceito como normal que o governo adquira votos, nas duas casas do Poder Legislativo, com cargos e verbas públicas, nada pode estar isento de improbidade e outras imoralidades. Na magistratura há mais corrupção, incompetência, irresponsabilidade profissional e nepotismo (nas instâncias superiores) do que ações contra esses vícios: ou seja, a magistratura não foge à regra do cenário brasileiro, no qual o governo foi agora mesmo denunciado pela Transparência Internacional por manter os mesmos níveis de corrupção encontrados, sem efetivar as providências prometidas na campanha. Mas, assim como as mortes injustificáveis por policiais, a tortura não é feita nas varas criminais, nem por sentença judicial. Passa-se em delegacias, que são dependências dos governos, e em ações externas de policiais, que são agentes dos governos.
É generalizada a acusação ao Judiciário de que não aplica punição rigorosa aos criminosos. A queixa é justificada. Há poucos dias foi preso, no Rio, um sujeito que usa quatro nacionalidades e diz chamar-se Alex Suyanoff, procurado pelas polícias de vários países da Europa e pela americana. Há mais de dez anos ficou identificado como responsável por grande rede de tráfico que abastece a Europa via África, usando transportadores nigerianos. Sua prisão agora, por simples acaso, levou a polícia a identificá-lo como fornecedor para sete quadrilhas de traficantes, senão mais. Como foi isso possível, se Suyanoff foi preso e condenado em 94 a 25 anos de reclusão?
Suyanoff cumpriu apenas 5 anos da pena. Um quinto. Não foi um privilégio seu. A fuga reduz penas, mas a legislação pode proporcionar o mesmo resultado. Há variados fatores de redução da pena, que favorecem a soltura com um terço e até menos da sentença. Essa legislação é obra do Poder Executivo (governo Federal) e do Poder Legislativo (Câmara e Senado).
A lentidão da chamada Justiça é, com frequência, impiedosa injustiça. Em inúmeros casos, sua causa é a incúria. Mas o desaparelhamento do Judiciário é espantoso, pela insuficiência do número de juizes e pela quantidade, milhares às vezes, de processos que um juiz responsável aprecia ano a ano. Situação cuja causa está bem dividida entre governos, Legislativo e o próprio Judiciário, cujas cúpulas, seja a federal ou nos estados, têm lutado menos por verbas para a eficiência do conjunto do que para o fausto nos altos tribunais, com fáceis deslizes para o escandaloso.
A lentidão exasperante do Judiciário lembra outra, de efeitos muito mais extensivos. O Supremo Tribunal Federal, acionado pela Associação dos Magistrados do Brasil, retirou o projeto, que mandara à Câmara, de Estatuto da Magistratura. Recaíram pesadas críticas sobre o STF e a AMB, acusados de impedir prováveis alterações, no projeto, que lhes retirariam vantagens atuais. Nem isso atenuaria, no entanto, o absurdo de que o projeto dormitava na Câmara há 11 anos. Um entre centenas, se não forem milhares, largados pela mesma indolência de um Poder que se dá por satisfeito com um único dia por semana com presenças eventualmente bastantes, na Câmara, para votações do plenário.
A relatora Asma Jahangir falou mais, e mais precipitadamente, do que caberia à sua séria função. Mas o Brasil integrou-se espontaneamente à ONU e aos seus regulamentos e atividades. Reações como a do governador Geraldo Alkmim, que não recebeu a relatora, só denunciam baixa cultura política. E se for recomendada, como anunciado por Jahangir, a vinda de inspetores, a obrigação de país filiado à ONU é recebê-los. E, quem sabe, pedir-lhes que olhem direito o país, suas instituições e a sociedade brasileira, para identificar corretamente as fontes da criminalidade e da impunidade que já preocupam até a ONU.



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