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JANIO DE FREITAS
Os domínios da impunidade
As atitudes mal contidas,
no Brasil, da relatora da
ONU para execuções sumárias tiveram dois efeitos não menos sumários: acentuaram uma crise
institucional latente, entre o governo Lula e o Judiciário, e agravaram, para mal dos nossos males, a velha confusão conceitual
em torno de impunidade, ação
policial, criminalidade e demais
temas correlatos.
Mas, apesar do já havido, só
quando Asma Jahangir apresentar o seu relatório oficial, na Comissão de Direitos Humanos das
Nações Unidas, será possível saber, acima de sua tumultuada
inspeção por aqui, o que de fato
propõe para ser feito no Brasil, a
favor ou contra, pela ONU.
Sua antecipada idéia de recomendar a vinda de uma equipe
para inspecionar o Poder Judiciário brasileiro, motivo do acirramento entre governo e magistrados, suscita dois problemas imediatos. O que significa e como poderia ser feita a "inspeção" de um
Poder Judiciário? A par desta incógnita, e a motivá-la, Asma Jahangir atribuiria à chamada Justiça o alto índice de impunidade
de policiais matadores e torturadores.
Daí ao embaralhamento de
questões distintas, o governo, a
partir do próprio Luiz Inácio Lula
da Silva, foi menos de um passo.
A sempre falada e nunca iniciada
reforma do Judiciário é uma necessidade que não admite dúvida.
Mas não é a sua falta que conduz
à impunidade relacionada à violência, policial ou não. A fonte
dessa impunidade sempre esteve
no governo federal e nos governos
estaduais: essa impunidade nasce
nas polícias, nos inquéritos
(quando chegam a existir) deformados por incapacidade, corrupção ou corporativismo policial.
No país onde é aceito como normal que o governo adquira votos,
nas duas casas do Poder Legislativo, com cargos e verbas públicas,
nada pode estar isento de improbidade e outras imoralidades. Na
magistratura há mais corrupção,
incompetência, irresponsabilidade profissional e nepotismo (nas
instâncias superiores) do que
ações contra esses vícios: ou seja, a
magistratura não foge à regra do
cenário brasileiro, no qual o governo foi agora mesmo denunciado pela Transparência Internacional por manter os mesmos níveis de corrupção encontrados,
sem efetivar as providências prometidas na campanha. Mas, assim como as mortes injustificáveis
por policiais, a tortura não é feita
nas varas criminais, nem por sentença judicial. Passa-se em delegacias, que são dependências dos
governos, e em ações externas de
policiais, que são agentes dos governos.
É generalizada a acusação ao
Judiciário de que não aplica punição rigorosa aos criminosos. A
queixa é justificada. Há poucos
dias foi preso, no Rio, um sujeito
que usa quatro nacionalidades e
diz chamar-se Alex Suyanoff, procurado pelas polícias de vários
países da Europa e pela americana. Há mais de dez anos ficou
identificado como responsável
por grande rede de tráfico que
abastece a Europa via África,
usando transportadores nigerianos. Sua prisão agora, por simples
acaso, levou a polícia a identificá-lo como fornecedor para sete quadrilhas de traficantes, senão mais.
Como foi isso possível, se Suyanoff
foi preso e condenado em 94 a 25
anos de reclusão?
Suyanoff cumpriu apenas 5
anos da pena. Um quinto. Não foi
um privilégio seu. A fuga reduz
penas, mas a legislação pode proporcionar o mesmo resultado. Há
variados fatores de redução da
pena, que favorecem a soltura
com um terço e até menos da sentença. Essa legislação é obra do
Poder Executivo (governo Federal) e do Poder Legislativo (Câmara e Senado).
A lentidão da chamada Justiça
é, com frequência, impiedosa injustiça. Em inúmeros casos, sua
causa é a incúria. Mas o desaparelhamento do Judiciário é espantoso, pela insuficiência do número de juizes e pela quantidade,
milhares às vezes, de processos
que um juiz responsável aprecia
ano a ano. Situação cuja causa
está bem dividida entre governos,
Legislativo e o próprio Judiciário,
cujas cúpulas, seja a federal ou
nos estados, têm lutado menos
por verbas para a eficiência do
conjunto do que para o fausto nos
altos tribunais, com fáceis deslizes
para o escandaloso.
A lentidão exasperante do Judiciário lembra outra, de efeitos
muito mais extensivos. O Supremo Tribunal Federal, acionado
pela Associação dos Magistrados
do Brasil, retirou o projeto, que
mandara à Câmara, de Estatuto
da Magistratura. Recaíram pesadas críticas sobre o STF e a AMB,
acusados de impedir prováveis alterações, no projeto, que lhes retirariam vantagens atuais. Nem isso atenuaria, no entanto, o absurdo de que o projeto dormitava na
Câmara há 11 anos. Um entre
centenas, se não forem milhares,
largados pela mesma indolência
de um Poder que se dá por satisfeito com um único dia por semana com presenças eventualmente
bastantes, na Câmara, para votações do plenário.
A relatora Asma Jahangir falou
mais, e mais precipitadamente,
do que caberia à sua séria função.
Mas o Brasil integrou-se espontaneamente à ONU e aos seus regulamentos e atividades. Reações
como a do governador Geraldo
Alkmim, que não recebeu a relatora, só denunciam baixa cultura
política. E se for recomendada,
como anunciado por Jahangir, a
vinda de inspetores, a obrigação
de país filiado à ONU é recebê-los.
E, quem sabe, pedir-lhes que
olhem direito o país, suas instituições e a sociedade brasileira, para
identificar corretamente as fontes
da criminalidade e da impunidade que já preocupam até a ONU.
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