UOL

São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FISCO EM GUERRA

Conversas do secretário com auxiliares grampeados pela PF mostram conflito do grupo com corregedor

Gravação de Rachid expõe intriga na Receita

LEONARDO SOUZA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A Polícia Federal grampeou os telefones de integrantes da alta cúpula do fisco. Gravações obtidas pela Folha revelam: a voz do próprio secretário da Receita, Jorge Rachid, foi captada pela escuta. Recheados de intrigas e palavrões, os diálogos expõem o ambiente de guerra campal que se instalou numa das repartições mais estratégicas da Esplanada.
A pedido do Ministério Público Federal e com autorização judicial, a Polícia Federal interceptou aparelhos celulares e telefones fixos de três pessoas. São todos amigos e auxiliares diretos do secretário Jorge Rachid.
São eles:
1) Ricardo Pinheiro: é um dos secretários-adjuntos e o segundo homem na hierarquia da Receita. Braço direito de Everardo Maciel, ex-secretário do órgão, foi mantido no cargo pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É o substituto eventual de Rachid;
2) Leonardo Couto: até duas semanas atrás, era o terceiro nome do organograma do fisco. Pediu afastamento do cargo de secretário-adjunto, para o qual fora nomeado também por Lula;
3) Nilton Tadeu. É superintendente da Receita para a região Centro-Oeste. No governo Fernando Henrique Cardoso, era delegado do fisco em Brasília.
A voz de Rachid foi captada por tabela, ao trocar telefonemas com pelo menos dois dos grampeados: Ricardo Pinheiro e Nilton Tadeu. Falam sempre de Moacir Leão. É o corregedor da Receita. Dedica-se, desde março, a investigar o primeiro escalão do fisco.
"É muito grave, acusação gravíssima", disse Rachid, voz tensa, a Ricardo Pinheiro, na tarde do sábado 2 de agosto. O secretário tinha nas mãos a cópia de reportagem que circulava na revista "Época" daquele final de semana.
Rachid leu para o auxiliar o enunciado da notícia: "Corregedor instala comissão de inquérito para investigar secretário da Receita. Muito grave, entendeu?" E Pinheiro: "Vamo pro pau." Rachid concorda: "A ação tem que ser enérgica e imediata".

Reação
Ao contrário da intenção revelada na intimidade de um diálogo que se imaginava privado, a "ação" de Rachid nem foi enérgica nem imediata. Tonificou-se entre os assessores do secretário a impressão de que o chefe comportava-se com tibieza incompatível com a dimensão da crise.
O corregedor Moacir Leão decidira investigar a suspeita de irregularidade em torno de uma infração de R$ 1,1 bilhão imposta pelo fisco à construtora OAS em 1994. Analisando recurso da empresa, o Conselho de Contribuintes podou a multa, reduzindo-a para R$ 25 milhões. Entre os fiscais que lavraram o auto estava Jorge Rachid, então mero auditor, lotado em Salvador.
"O único direito que ele tem é o direito à ira. Ele não tem direito de angústia, ele não tem direito de preocupação", disse Pinheiro, braço direito de Rachid, ao superintendente do fisco para o Centro-Oeste, Nilton Tadeu.
"Nós temos tudo na mão, a faca e o queijo", diz Tadeu, no mesmo diálogo. "Isso aqui fica mais triste porque é uma imagem que [se] vem construindo ao longo de anos. De repente, um insano [Moacir Leão] derruba tudo isso."
Nilton Tadeu é, a exemplo de Rachid, alvo do corregedor Leão. Apura-se a suspeita de que teria pressionado dois auditores para encerrar "rapidamente e sem resultados" investigação fiscal em torno de Eduardo Jorge Caldas Pereira, ex-secretário-geral da Presidência (gestão FHC). Uma acusação que, munido de documentos, Tadeu refuta.
A conduta de Rachid destoa da de seus auxiliares. Como eles, concordava que os gestos do corregedor Moacir Leão não podiam ficar sem resposta. Mas hesitava até mesmo ao tratar de detalhes triviais. Como no instante em que marcou um encontro para o domingo 3 de agosto.
Ricardo Pinheiro defendia a realização da reunião na sede da própria Receita. "Essa merda pra mim é institucional. Não vai ser na minha casa nem na sua." E Rachid: "O problema é que vão aparecer os nossos carros lá e vai chamar a atenção." Pinheiro se exalta: "Mas é pra isso mesmo [...]".

Desabafo
"Nem eu nem ninguém entende como é que isso tá chegando tão longe, porra", desabafou o auditor fiscal Flávio Franco Corrêa em outro diálogo captado pela Polícia Federal. Corrêa é amigo de Rachid. Trabalha no Rio de Janeiro. Integra a "força tarefa" que investiga o sumiço de dívidas de empresários dos computadores da Receita. Falava com o também amigo Leonardo Couto, àquela altura ainda lotado na assessoria direta de Rachid. Caiu justamente por conta do diálogo com Corrêa.
Couto responde a inquérito administrativo aberto por iniciativa do corregedor Leão, que o acusa de atrapalhar o trabalho da Corregedoria. Acusam-no da tentativa de proteger os ex-auditores fiscais Paulo Baltazar e Sandro Martins, sob investigação da Corregedoria. Foi sob a orientação de ambos que a OAS logrou reduzir de R$ 1,1 bilhão para R$ 25 milhões a multa que Rachid ajudou a calcular. Foi para levar adiante as investigações contra Baltazar e Martins que o Ministério Público requisitou à Justiça a quebra do sigilo telefônico dos integrantes da cúpula da Receita.
"Eu vou falar com ele [Rachid] no telefone, ele fica com medo de falar", disse Corrêa a Couto. "Acho que ele tá preocupado. De repente, o telefone tá grampeado, qualquer coisa assim. Aí fica falando por códigos [...] Ele é inseguro pra c... [...] Ele deve sofrer muito porque não toma decisão, porra."
Rachid foi alertado pelo superintendente Nilton Tadeu acerca de um sentimento que contaminava os demais chefes da Receita nos Estados. "O pessoal tá preocupado [...] Porque não sabe qual a resposta que cê tá dando e que foi longe demais, né? [...] Na verdade, não tamo divulgando nada nem pra dentro, não é?"



Texto Anterior: Infra-estrutura: Lula critica a paralisação de obras durante a inauguração de ponte
Próximo Texto: Outro lado: Secretário não fala, e auditor diz que grampo é "absurdo"
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.