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São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 2003

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ANOS DE CHUMBO

Para o secretário de Direitos Humanos, Calandra foi "militante da tortura" e não devia ter a função

Acusado de tortura é chefe na polícia de SP

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

No início dos anos 70, o delegado Aparecido Laertes Calandra comandava interrogatórios do DOI-Codi paulista, uma das centrais de repressão do regime militar. Trinta anos depois, o acusado de tortura voltou a lidar com informação e análise, desta vez no comando da Dipol, o Departamento de Inteligência da Polícia Civil de São Paulo, com poderes reforçados desde outubro passado. O nome de guerra é o mesmo de antes: Capitão Ubirajara.
No organograma da segurança pública do Estado, o departamento de Calandra está subordinado ao gabinete do delegado-geral da Polícia Civil, Marco Antonio Desgualdo, subordinado, por sua vez, ao secretário de Segurança, Saulo de Castro Abreu Filho, ambos indicados pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB). No prédio do bairro da Luz, uma das atribuições de Calandra é cuidar da escuta telefônica.
Na semana passada, a notícia chegou ao gabinete do secretário Nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda. Ex-preso político, o secretário se lembra do Capitão Ubirajara das passagens pelo DOI-Codi. "Calandra teve um papel importante, não era do segundo time, estava na linha de frente da repressão. Era um militante da tortura, não um cumpridor de ordens", disse Miranda.
"Embora a anistia tenha tirado a responsabilidade criminal dos torturadores, fica a questão ética: um ex-torturador pode ocupar cargos de confiança num trabalho de inteligência?", questiona o secretário. A sua resposta: "Acredito que não, a história dele não recomenda".
Miranda argumenta que a presença de Calandra na Dipol não é um caso de ascensão na carreira, mas a escolha de alguém com perfil complicado para uma área delicada, que lida com a privacidade das pessoas e pode dar brecha a arbitrariedades.
A questão não é inédita. Em 99, três dias depois de nomear João Batista Campelo diretor-geral da Polícia Federal, o então presidente Fernando Henrique Cardoso teve de demiti-lo.
O curto caminho entre a nomeação e a queda deveu-se ao depoimento do ex-padre José Antônio Monteiro. Ele contou que Campelo não se opusera ao uso do pau-de-arara numa sessão de tortura da qual fora vítima em 1970, no Maranhão. O depoimento foi dado à Comissão de Direitos Humanos da Câmara, presidida à época por Nilmário Miranda.

Voz estridente
No caso de Calandra, o envolvimento com a tortura não se limitou a episódios isolados. Segundo relatório periódico de informações do DOI de julho de 75, citado pelo jornalista Elio Gaspari no livro "A Ditadura Escancarada", em menos de cinco anos, passaram pelas dependências da esquina das ruas Tutóia e Tomás Carvalhal 2.335 presos políticos.
Pelo menos dois deles morreram depois de serem torturados pela equipe de Calandra, de acordo com relato do Movimento Tortura Nunca Mais.
O primeiro foi Hiroaki Torigoi, dirigente do Molipo (Movimento de Libertação Popular), o mesmo por onde passou o chefe da Casa Civil, José Dirceu. Tinha 28 anos e cursava medicina. À época, disseram que tinha morrido depois de ferido em tiroteio com agentes de segurança.
O segundo caso relatado pelo Tortura Nunca Mais é o de Carlos Nicolau Danielli. A notícia impressa com a versão oficial para a morte do ex-dirigente do PC do B -"Terrorista morto em tiroteio"- foi levada por Calandra a uma outra presa política, Maria Amélia de Almeida Teles, testemunha das sessões de tortura a que Danielli foi submetido durante três dias. "Ele berrou e me mandou ler em voz alta a notícia, eu disse que não era verdade, e ele: "Aqui damos a versão que queremos e, se não colaborar, vai ter uma manchete dessas também.'"
"Ele era uma pessoa fria, calculista, um homem terrivelmente ameaçador", completa a ex-militante comunista, hoje integrante da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.
"Ele tinha uma voz meio metálica e estridente, se vestia bem, fazia pose, era muito agressivo e cínico, particularmente cínico", conta Artur Scavone, outro que passou pelas mãos do Capitão Ubirajara. Ex-militante da Molipo, ele conviveu com Calandra no DOI-Codi por nove meses.
Uma das lembranças mais fortes da equipe do Capitão Ubirajara era o permanente clima de terror que criava ao repetir barulhos de chaves (sinal de que um novo interrogatório era iminente) ou de canos de metal (sinônimo de montagem do pau-de-arara).

Limpeza de arquivo
O nome do Capitão Ubirajara também é associado ao episódio que resultou na morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI. O IPM (Inquérito Policial Militar) que concluiu que Herzog havia se enforcado na grade da cela não ouviu Calandra, apontado nos laudos como o autor do pedido de perícia.
No mesmo mês de outubro de 75 em que Herzog morreu, o codinome Capitão Ubirajara já aparecia na lista de 233 torturadores do relatório produzido no Presídio da Justiça Militar Federal e encaminhado ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Entre os presos políticos que assinam o documento está José Genoino, atual presidente do PT.
O Capitão Ubirajara é o número 84 da lista. Os presos não sabiam sua identidade completa na época. Isso só aconteceu anos depois, quando Calandra foi trabalhar com senador Romeu Tuma (PFL-SP) na Superintendência da Polícia Federal em São Paulo, em 83. Coube a ele cuidar dos arquivos da polícia política paulista transferidos para a PF pouco antes de o então governador Franco Montoro extinguir o Dops. Sob seus cuidados, parte das informações dos arquivos desapareceu.



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