São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JANIO DE FREITAS

Criadores da crise

A crise faz três meses, a contar da exibição de suborno gravado nos Correios. No primeiro mês, Lula reiterou várias vezes: "No meu governo ninguém será demitido se não estiver condenado". No discurso em que mais pareceu festejar o terceiro mês da crise, com louvações a si e ao seu governo, do que desejar dizer algo útil ao país desgostoso, disse Lula: "Afastei prontamente os que foram mencionados".
Apesar disso, Lula foi capaz também de afirmar: "Eu não mudei". Forma e teor filiados à linhagem retórica com que Marcos Valério de Souza havia aberto a semana na CPI: "Eu não minto".
Não a substância, mas o espírito da crise é um festival de mentiras, talvez uma competição entre modalidades de hipocrisia, que em menor número de competidores, pode-se admitir, não passaria de inconsciência. Mas nem esses escapam a uma pesada responsabilidade.
Os parlamentares petistas que se sentiram "traídos e revoltados", à maneira do senador Aloysio Mercadante, ao saberem dos crimes financeiros do PT divulgados por Duda Mendonça, não diminuem com sua indignação a parcela de culpa que têm na criação da crise e do pasmo inquietante estendido ao país todo.
Nada do que se vê ou se comprova agora começou com a aliança de dirigentes petistas a operadores da criminalidade financeira (dos quais a Diretoria de Fiscalização do Banco Central só toma conhecimento pelos jornais). Tal associação é conseqüência.
Na origem do processo têm relevância os parlamentares petistas e o diretório nacional do PT.
O ponto de partida foi a concessão dos petistas ao abandono de tudo o que defenderam, representaram e prometeram ao longo de sua existência política. Os petistas investidos do poder de governo travestiram-se ainda antes da posse. Desde o seu primeiro momento como governante, o PT renegou-se. Não me refiro, até por desnecessidade, à sujeição da política econômica aos preceitos do FMI, sem nem sequer esboçar o exame de atenuações, ao menos atenuações. Refiro-me à política social, desde a primeira iniciativa do governo -a "reforma" da Previdência- modelada pelos preceitos anti-sociais do conservadorismo mais duro. Quatro, só quatro parlamentares do PT, mantiveram-se leais aos seus e aos princípios pregados pelo petismo.
As concessões políticas avalizadas pelo diretório nacional e pelos parlamentares transformaram-se, por desdobramento lógico, em concessões programáticas. Aceitas, todas, pelo diretório nacional e defendidas pelos senadores e deputados petistas, com exceções tímidas em número e na atitude. O PT estava igualado a todos os partidos, concedente como todos em troca de usufruir das vantagens, eleitorais e outras, de ocupar o poder. Por essa concessão absoluta são responsáveis todos os petistas que a aceitaram, não faz diferença se a assumindo ou apenas tolerando-a.
Perdido o pudor para abrir mão dos princípios ideais e programáticos, a decorrência natural era a perda do pudor para abandonar os princípios morais. Estes e aqueles têm afinidade indissociável. Mesmo na flexibilidade própria da política. O PT tornou-se um ambiente de relaxamento ético: entre os parlamentares, sujeição geral, aprovando qualquer coisa a desejo dos chefões; nas práticas partidárias, a sujeição ao grupo que empalmou o poder interno e controlou o poder governamental. A reação a isso não passou do que, dito com certa impiedade, foram apenas muxoxos.
Só há pouco, enquanto os líderes petistas e seus prepostos continuavam defendendo até os comprometidos com as falcatruas já denunciadas, emergiu entre os parlamentares do PT uma atitude organizada e franca de defesa dos princípios originais do petismo. Mas não conseguiu ir além de 21 integrantes. Em mais de cem. Mesmo o surgimento de reação denuncia, por sua quase insignificância, o comprometimento dos parlamentares e do diretório nacional com a degração do PT e com a frouxidão ética que gerou a crise.
Lula: "Eu me sinto traído e indignado". Não está sozinho. Dezenas de milhões sentem o mesmo. Mas em direção diferente.

Fora
Aqui citado várias vezes na nota de quinta-feira, em duas delas o deputado petista Paulo Pimenta virou Paulo Pimentel. Não atribuo a lapso, como pareceria, mas a coerência involuntária. Confundir os dois Paulos não agravou um nem outro. O Pimentel também chegou à notoriedade nacional como acusado de práticas inaceitáveis.
Paulo Pimenta renunciou à vice-presidência da CPI do Mensalão. Mas continua na comissão, o que é absurdo em se tratando de alguém que tentou impingir uma fraude na própria CPI, com acusação falsa a 102 pessoas em documento forjado. E esteve em conluio comprovado com o próprio investigado Marcos Valério de Souza. Nem é só o lugar na CPI que Paulo Pimenta não pode manter, sob pena de comprometê-la. É também a cadeira de deputado.

$$$
A nova versão apresentada por Valdemar Costa Neto, para os R$ 10 milhões que lhe são destinados na generosidade petista de Marcos Valério, lança um véu protetor sobre os deputados do PL e o próprio Costa Neto. Se o pagamento foi acertado, em reunião testemunhada até por Lula e José Alencar, antes da campanha eleitoral PT-PL e para custeá-la, nenhum deputado do PL recebeu o mensalão. São todos inocentes. Como o angelical Valdemar Costa Neto.
A propósito: as CPIs deveriam rever o depoimento e as entrevistas de Maria Christina Mendes Caldeira, ex-mulher de Valdemar Costa Neto. Ela se referiu a viagens de Costa Neto ao exterior para busca de dinheiro, inclusive com Delúbio. E cita a Trade Link muito antes de Duda Mendonça fazê-lo, como uma das depositantes externas em sua conta nas Bahamas.

Texto Anterior: "Doadoras" de Duda são ligadas a doleiro
Próximo Texto: Escândalo do "mensalão"/Lula na mira: Impeachment constitui processo político
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.