São Paulo, sexta, 14 de agosto de 1998

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QUEIMANDO A LÍNGUA

Lula, "você' e o "de que'

PASQUALE CIPRO NETO

Não é necessário dizer que Lula carrega fardo pesado. Muita gente, que nem sequer ouve o que ele diz, vai logo tachando-o de analfabeto.
O discurso de Lula, no entanto, é articulado. Lula é articulado. Seu vocabulário e sua sintaxe, por exemplo, não diferem do padrão apresentado por brasileiros urbanos letrados, informados e politizados -candidatos ou não.
Lula erra a concordância, como a maioria dos brasileiros. Em Natal, durante entrevista que antecedeu sua participação no congresso da SBPC, Lula disse que "é importante todas ações". Nenhuma novidade. Como bom brasileiro, Lula põe o verbo no singular com o sujeito posposto no plural.
Posto isso, e voltando ao que afirmei na primeira coluna desta série -nenhum preconceito contra nenhum candidato-, vamos a alguns detalhes do discurso do petista.
O famoso "de que" é uma das marcas atribuídas a Lula. O que é isso? É o uso desnecessário do de antes do que.
"Queremos deixar claro de que nossa posição é absolutamente consistente", por exemplo, é caso de uso desnecessário da preposição de. O verbo deixar não pede a preposição de. Afinal, alguém deixa claro algo, e não deixa claro de algo. Basta dizer "deixar claro que", e não "de que".
Em Natal, Lula disse: "O presidente deu ontem uma demonstração inequívoca de que nem ele acredita...". Depois disse: "É preciso que os homens públicos dêem no mínimo demonstração de que a classe política...".
Que tal as duas ocorrências de "de que"? Corretas. Nos dois casos, o de sai do substantivo demonstração. Dá-se demonstração de alguma coisa.
Depois, Lula disse: "Queremos dizer aos cientistas que...". Disse também: "A tecnologia já permite que o homem conviva...". E ainda: "O presidente é o primeiro a reconhecer que...".
Acertou nos três casos. Os verbos dizer, permitir e reconhecer não pedem a preposição de (dizer algo, permitir algo, reconhecer algo).
Em outros tempos, Lula certamente teria dito "de que" nos três casos. Parece que -tanto melhor- perdeu o cacoete, do qual muitos ainda não se livraram.
Mas não perdeu outro, cansativo. O de usar "você" como indefinido, genérico: "Acho importante você tentar limitar...". O problema é que esse "você" não era a pessoa com a qual Lula conversava -um jornalista, no caso.
Lula usou isso várias vezes. Lembrou-me uma matéria que vi na televisão. Um repórter -homem- entrevistava uma mulher grávida. Inabalável, a futura mamãe disparou, diante do atônito repórter: "Quando você fica grávida...".
Sem comentário. É isso.



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