São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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PEQUENAS CAUSAS

Casos curiosos e de interesse restrito são comuns na principal instância do Poder Judiciário brasileiro

STF julga de roupa sumida à mordida de cão

SILVANA DE FREITAS
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Acostumados a dar a palavra final em causas de grande repercussão econômica, os 11 ministros que integram o STF (Supremo Tribunal Federal) também estão sujeitos ao exame de casos esdrúxulos e de interesse restrito, como furto de galinhas, desaparecimento de jaqueta em lavanderia, estouro de aparelho de ar-condicionado e mordida de cachorro.
Essas ações chegam com relativa facilidade à última instância porque, quando inconformado com a sentença, o perdedor encontra um sistema processual que lhe permite levar às últimas conseqüências o esforço de virar o jogo. No Supremo, basta que ele conteste a derrota judicial apontando a suposta violação de um princípio constitucional, como o direito a ampla defesa.
Por essa razão, o STF vive congestionado. Entre 1999 e o ano passado, o Supremo recebeu 471.985 processos e julgou 388.630. Em 2003, o número de recursos caiu em relação ao ano anterior: passou de 160.453 para 87.186. O julgamento da maioria dos recursos demora entre dois e oito meses porque o tribunal já tem jurisprudência sobre cada assunto. Em alguns casos, porém, a decisão final pode demorar anos.
O camponês João José Rambo, do Rio Grande do Sul, quer receber do Estado indenização por danos morais, porque diz ter sido condenado injustamente pelo furto de cinco galinhas, "três gordas e duas magras", de acordo com o seu advogado. Rambo ficou 11 meses preso, conseguiu anular a sentença por falta de provas, mas não obteve êxito no pedido de indenização do Estado.
A ação chegou ao STF em setembro de 2003 e seguiu ao gabinete do ministro Sepúlveda Pertence, que examina milhares de outros processos e prepara as eleições municipais na condição de presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). No exemplo da ação do camponês, as conseqüências de uma simples acusação de furto, feita por um vizinho, podem esconder um debate jurídico relevante: a obrigação de o Estado indenizar vítimas de um erro do Judiciário, quando comprovado.
Nem sempre é assim. No caso da jaqueta de couro preta que desapareceu de uma lavanderia no Guarujá, a cliente não chegou a um acordo com os donos da loja sobre o valor necessário para ressarcir o dano, a Justiça fixou um valor intermediário, mas a lavanderia recorreu ao Supremo.
No conflito de um casal do Rio de Janeiro com uma loja de assistência técnica de condicionadores de ar, o estabelecimento se recusa a pagar uma indenização pelos danos e aborrecimentos causados pelo estouro do aparelho e contesta a sua responsabilidade.

Direito canino
Outros três casos levantados pela Folha são relacionados a problemas com cachorros: a morte de um animal, uma mordida e uma briga entre dois deles.
No primeiro, revelado recentemente pela Folha, uma moradora de Belo Horizonte diz que a sua cadela Pretinha foi recolhida pela carrocinha e em seguida morta. Ela quer indenização pela perda.
No segundo, um morador de Porto Alegre contesta a afirmação da vizinha de que o seu cachorro a mordeu, dizendo que não há provas suficientes desse fato.
No último, já julgado, a dona de um dos cães envolvidos numa briga foi condenada a pagar multa, porque o seu animal foi considerado perigoso, mas ela afirmou que o processo era nulo por inexistência de laudo veterinário sobre a periculosidade. O caso foi arquivado por impossibilidade técnica de reexame de provas.
Tentativas frustradas de audiência com o presidente da República também deságuam no STF. Em 2003, o Instituto Ponto de Equilíbrio Elo Social Brasil, de São Paulo, pediu que Luiz Inácio Lula da Silva fosse interpelado judicialmente para dar explicações sobre a impossibilidade de a entidade agendar um encontro com ele. Essa ação está sobre a mesa do ministro Marco Aurélio de Mello, que também é o relator dos processos sobre o estouro do ar-condicionado, o sumiço da jaqueta de couro, a mordida do cachorro e a morte da cadela Pretinha.
Alguns desses casos precisam ir ao plenário. Outros são levados a julgamento de uma das duas turmas do Supremo, compostas por cinco ministros cada uma. Em algumas circunstâncias, o relator decide individualmente.
Apesar de estarem habituados a julgar causas esdrúxulas, os ministros do STF não contiveram o riso numa sessão plenária de 1996, na qual apreciaram o habeas corpus de um suposto aposentado do Rio de Janeiro que dizia estar temeroso de ser obrigado a se submeter à cremação e defendia o seu direito de continuar vivo.
O suposto aposentado se opunha a um ato que havia sido inventado e creditado ao então presidente Fernando Henrique Cardoso: o envio de ofício a pessoas com mais de 65 anos para que eles se dirigissem ao crematório mais próximo caso fossem inúteis. Dos 11 ministros presentes àquela sessão, seis já se aposentaram compulsoriamente por critério de idade ao completarem 70 anos.
A existência do autor do habeas corpus, Epaminondas Patriota da Silva, não ficou comprovada. Esse tipo de ação dispensa a assinatura de advogado e a prova de residência. O endereço citado, na favela da Rocinha, no Rio, era fictício, como a Folha apurou na época.


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