|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA DE 2ª
PAULO BONAVIDES
Em vez de resolver a crise, mudanças provocariam grave instabilidade institucional, diz constitucionalista
Para especialista, proposta de revisão constitucional é golpe
UIRÁ MACHADO
COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS
A proposta de revisão constitucional aprovada na última quarta-feira na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara deve ser
vista como "ato de terrorismo"
que assassina a Constituição Federal. Sugestões semelhantes, como a convocação de nova Constituinte, não podem ser encaradas
senão como "golpismo terrível".
Além disso, em vez de resolver a
crise -como pretendem os defensores das propostas-, tais sugestões podem agravá-la. Mudanças como as propostas criam uma
situação de grave instabilidade
institucional e colocam em risco
as conquistas da cidadania expressas na Carta de 1988.
A análise é de Paulo Bonavides,
80, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Presidente emérito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, é uma das
maiores autoridades em direito
constitucional do Brasil.
A seguir, trechos da entrevista
concedida à Folha na última sexta-feira, na qual Bonavides ainda
afirma que as propostas de encurtar o mandato de Luiz Inácio Lula
da Silva também são golpistas, diz
acreditar que o Congresso caminha "célere" para abrir o processo
de impeachment e vê na instauração da democracia participativa a
única saída constitucional para a
crise das instituições no país.
Folha - Como o sr. vê as propostas
de convocação de uma nova Constituinte como remédio para a crise?
Paulo Bonavides - Essas propostas são completamente inconstitucionais. Elas atentam contra o
ordenamento jurídico estabelecido com a Carta de 1988. A nossa
Constituição Federal prevê uma
possibilidade de mudança, a qual
passa pela regulamentação mais
ampla da iniciativa popular, do
plebiscito e do referendo.
Fugir disso e convocar uma
Constituinte para reelaborar a
Constituição poderá ser um passo
em falso, um retrocesso, uma
queda na ingovernabilidade.
Folha - Por que as propostas são
inconstitucionais?
Bonavides - A convocação de
uma Assembléia Constituinte não
pode ser feita dentro dos quadros
de uma Constituição. Quem a
convoca -no caso, o Congresso- é um poder constituinte de
segundo grau, que se move e atua
nos limites jurídicos estabelecidos
pela própria Constituição.
Um poder de segundo grau, até
por razões lógicas, não pode substituir-se ao poder de primeiro
grau, que o criou.
Substituir o poder constituinte
originário por um poder constituinte de segundo
grau contraria todos os ensinamentos constitucionais. A Constituinte não pode
ser encarada de
outra forma senão como o ato de
rasgar a atual
Constituição.
Folha - Mesmo
que essa Constituinte seja exclusiva ou tenha poderes limitados?
Bonavides - Não
importa de que
jeito isso seja feito. Uma nova
Constituinte, com
maiores ou menores poderes,
deve ser vista como um golpe.
Tanto faz ela ser exclusiva ou dotada de poderes limitados. A inconstitucionalidade será a mesma: manifesta, visível e insanável.
É preciso insistir na necessidade
de resolver a crise que o país atravessa pelo emprego de uma solução constitucional, e não por um
expediente de alto risco para as
instituições, como seria a convocação de uma Constituinte. Esse
ato equivale a um golpe de Estado, lesivo e fatal à Lei Maior.
Folha - O sr. considera golpismo?
Bonavides - É um golpismo terrível. Conhecemos o golpe de Estado clássico, do qual o exemplo
mais recente em nossa história foi
a ditadura militar. Em geral, esse
tipo de golpe tem amplo apoio da
sociedade, mas, ainda assim, é feito pela força das armas e mantido
com sustentação militar.
Outro tipo de golpe é o institucional, cujo exemplo foi o governo Fernando Henrique, que, silenciosamente, minou as instituições sem que o povo percebesse.
Essa Constituinte que agora se
propõe configuraria um terceiro
tipo: o golpe congressual. Como
constitucionalista, não posso admitir que isso ocorra. O respeito à
Constituição é fundamental para
o bom caminhar de uma nação e
para consolidar as instituições republicanas e federativas do país.
Folha - Propostas como encurtar
o mandato de Lula e antecipar as
eleições também são golpistas?
Bonavides - São. A Constituição
prevê apenas duas formas pelas
quais o presidente pode deixar o
cargo antes do tempo previsto:
por renúncia ou impeachment.
Folha - É o caso de uma delas?
Bonavides - Por enquanto, não.
O impeachment nunca é bom para o país. Só deve ser usado se for,
de fato, necessário. Mas, pelo volume e gravidade dos fatos mais
recentes revelados nas investigações das CPIs, o Congresso está
marchando célere para a abertura
de um processo de impeachment.
Folha - A OAB discute a possibilidade da convocação de uma nova
Constituinte. Como o sr. vê isso?
Bonavides - Espero que os conselheiros federais do órgão não
aceitem essa proposta. No dia em
que a OAB levantar uma bandeira
da inconstitucionalidade como
essa, ficarão perdidas todas as décadas de dignidade e toda a tradição de lutas em nome do Estado
democrático de Direito.
Folha - E quanto à proposta aprovada na CCJ, que cria a Assembléia
de Revisão Constitucional e reduz o
quórum para aprovação de emendas constitucionais?
Bonavides - O projeto de emenda aprovado na CCJ é um ato de
terrorismo contra a Carta Magna.
Terrorismo constitucional.
Trata-se de outra singularidade,
maquinada por congressistas cuja
cegueira não lhes deixa perceber
que, ao convocarem uma Constituinte de bolso, nos termos em
que pretendem fazê-lo, estão perpetrando duas monstruosas inconstitucionalidades: a primeira
está na convocação mesma de tal
assembléia; a segunda, no aniquilamento do quórum constitucional do artigo 60.
Nesse quórum está o coração da
Carta Magna, que deixará de bater, fulminado no instante em que o alterarem. É o quórum, como garantia constitucional, talvez a maior
das cláusulas pétreas
[que não podem ser
alteradas] tácitas. Alterá-lo é assassinar a
Constituição. É imergir o país no caos, na
ingovernabilidade e
na catástrofe das instituições.
Folha - Mas uma nova Constituição não
poderia sanar problemas atuais? Ou seja,
devemos rejeitar uma
proposta que poderia
ser boa para o país?
Bonavides - Em primeiro lugar, acho que
a situação ainda não é tal que seja
preciso falar em mudanças tão
profundas. Precisamos perder essa mania de achar que qualquer
crise requer uma mudança constitucional.
Além disso, uma nova Constituição, em vez de resolver o problema da crise em marcha, poderá até agravá-lo.
Em segundo lugar, sou parlamentarista convicto, mas nem
por isso vou atuar para que essa
forma de governo seja instaurada.
O povo já decidiu, por plebiscito,
que o nosso sistema é o presidencialista. Exauriu, portanto, a matéria. A decisão do povo deve ser
respeitada como soberana.
Folha - O sr. receia que uma mudança possa pôr a perder os avanços da Constituição?
Bonavides - Muito. Esse é um
risco enorme. Não podemos brincar com isso. Essa mudança só
poderia interessar às elites dominantes. Isso porque a Carta de 88 é
a Constituição Cidadã, a Constituição da normatividade dos
princípios, a mais idônea de todas
as épocas republicanas, a mais rica de potencial democrático.
Atacar a Constituição como forma de resolver a crise transformaria o Brasil em um país desconstitucionalizado. Não podemos
achar que é possível resolver crises institucionais por meio do
desrespeito à instituição mais importante do país. Se a Constituição pode ser refeita a cada instante, então não há Estado de Direito.
Folha - Como resolver problemas
institucionais sem causar com isso
uma ruptura?
Bonavides - A mudança possível
é no sentido de transformar a democracia direta em democracia
mais participativa, dando mais
poder ao povo, mais presença
deste na legitimação das tarefas
de governo. Isso, sobretudo, com
referência àqueles atos de natureza legislativa, como são as medidas provisórias. Por via destas é
que ocorrem os abusos mais vexatórios à ordem constitucional
por parte do Executivo.
O povo assumirá o exercício da
soberania se for promulgada, por
exemplo, uma emenda constitucional que faça doravante todos
os atos do poder referentes a problemas institucionais ficarem sujeitos ao referendo. Ficaremos, assim, mais perto de acabar com o
pesadelo desta crise sem paralelo
e sem remédio até agora porque é
também uma crise da ética.
Folha - Essa é uma saída constitucional?
Bonavides - Sim. Se o Congresso,
emendando a Constituição, der
ao povo poderes ativos de soberania militante e diuturna, a classe
dirigente, sem destruir o ordenamento, poupará ao país mais sofrimento, mais incerteza, mais
instabilidade na vida pública e na
conservação do regime.
A desagregação moral dos quadros representativos nos conduz à
necessidade de estabelecer, pelas
vias constitucionais, a democracia participativa. Isso seria o fim
do presidencialismo em sua substância, sem removê-lo na forma.
A democracia participativa tem
capacidade para resolver no Brasil a crise das instituições e da legitimidade. Resta apenas adotá-la.
Texto Anterior: Outro lado: Para senador, denunciante mente Próximo Texto: Sugestões visam reescrever texto da Constituição Índice
|