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São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2003

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ELIO GASPARI

De ítalo.zappa@org para Lula

Caro Lula,
Cuidado, estão querendo fritar o Celso Amorim. Quem? Sei, mas não posso dizer. Digo-lhe o que eu dizia quando estava por aí: muita gente que mete a colher na política externa brasileira devia passar todas as manhãs pela embaixada americana, para cumprir um pequeno expediente. Não é justo que eles ocupem espaço em nossas repartições públicas para defender os interesses dos Estados Unidos. Eu sei do que falo. Servi ao Itamaraty por 45 anos, 20 como embaixador, sempre em países onde os supermercados não vendiam desodorante. Amarguei alguns desconfortos em Havana, Pequim, Maputo e Ho Chi Minh (ex-Saigon), mas também não tive que aturar as peruas que vão a museu de salto alto e os chatos que saem de mocassins na neve.
Lula, estão querendo fritar o Celso Amorim por um só motivo: ele defende aquilo que julga ser o interesse brasileiro. Espera-se tudo do Itamaraty, menos isso.
Em 1975 o Brasil tomou uma posição própria na construção das nações africanas que emergiam do colapso do império português. A CIA trabalhou para tirar o embaixador Ovídio de Mello de Luanda. Ele foi parar na Tailândia e amargou 90 preterições. (O Ovídio está aí, mora no Leblon. Quem sabe, valeria a pena pedir-lhe para contar como funciona a frigideira onde tostam-se os interesses nacionais.) Tinha gente que dizia o seguinte: o Brasil está ajudando a facção angolana que dará bases navais aos russos para atacar o litoral brasileiro. Passou o tempo, e o professor Henry Kissinger, a cujo serviço estavam os sicários nacionais, reconheceu em suas Memórias que fez bobagem em Angola. Escreveu um dos maiores elogios já feitos à diplomacia brasileira.
Desde que cheguei aqui, em 1997, andei procurando pelo George Humphrey. Hoje ninguém se lembra dele. Foi o secretário do Tesouro dos Estados Unidos de 1953 a 1957. Fez carreira e fortuna na Hanna, uma das maiores mineradoras do país. Corria uma história a respeito dele. Uma história que tem muito a ver com as negociações de hoje. É a seguinte:
Em 1953, quando o governo de Getúlio Vargas buscava financiamentos nos Estados Unidos, o Departamento do Tesouro dizia que era necessário que o Brasil fizesse o dever de casa, pusesse a casa em ordem. Até aí, nada de novo, pois passaram-se 50 anos e a conversa é a mesma. Eu queria saber do Humphrey se ele realmente tinha dito, durante uma reunião, que o governo dos Estados Unidos não tinha nada que ajudar o desenvolvimento de economias que poderiam vir a competir com a sua.
Outro dia me encontrei com ele e perguntei-lhe se a tal história era verdadeira. (Aqui não se pode mentir. Já basta o que se mentiu por aí.) O Humphrey confirmou. Ele disse exatamente o que eu tinha ouvido. Achava impróprio incentivar a existência de uma industria brasileira que pudesse competir com a americana. Produzir automóveis, por exemplo, nem pensar. Puxou a agenda e mostrou-me a data: 2 de outubro de 1953, numa reunião onde estava um diplomata chamado Edward Cole.
Fomos dar uma volta e ele lembrava da pressão para que se trocasse o financiamento americano pelo abandono do monopólio estatal de petróleo. Disse-me que devia procurar uma reportagem da revista "Fortune", de 1954, que desdenhava a criação da Petrobras. Ela previa que, sem a tecnologia americana, só restaria à empresa "dançar samba". Alguém disse ao Humphrey que a Petrobras faliu. Ele acreditou, e eu não quis contrariá-lo. Afinal, aqui a gente não precisa de gasolina.
Não se preocupe, Lula, daqui a uns cem anos você estará aqui e nós vamos juntos procurar o Robert Zoellick para que ele nos conte o que achava da fritura do Celso Amorim.
Fique com o abraço do
Ítalo Zappa

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