São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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ANDAR DE BAIXO

Meio-irmão do presidente eleito trabalha em padaria do Guarujá e ganha R$ 300 por mês

Lulinha serve bebidas na Real Brasil

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

O Lulinha, ali, não tem nada de paz e amor. Com cara de poucos amigos, pano de prato nas mãos, rejeita o repórter impiedosamente: "Esquece, companheiro. Pode esquecer. Não dou entrevista". Deixa claro que está nervoso. "Não percebe? Jornalista me põe maluco..."
Tira o boné branco, coça a cabeça e passa pela enésima vez o pano sobre o balcão da modesta padaria em Vicente de Carvalho, distrito do Guarujá (SP). "Dar entrevista... Não dou. Nem que implore. O presidente é ele, ó!" E aponta para a TV ligada.
Terça-feira, dia 10, 13h20. No telejornal, Luiz Inácio Lula da Silva, 57, aparece junto de George W. Bush, em Washington. Na padaria, o copeiro João Inácio da Silva Neto, 39, irmão do ex-metalúrgico por parte de pai, serve bebidas, prepara petiscos, frita um hambúrguer.
Os fregueses, velhos conhecidos, chamam-no de Lulinha. Atarracado, ligeiro, guarda mesmo muita semelhança física com o petista. "Ô, Lulinha, vê uma pinga, da mais ardida, e bote na conta da Presidência."
Há, porém, ironia maior. O nome da panificadora: Real Brasil. "Como a moeda e o país", frisa um dos proprietários, Arnaldo Melilo, 62, enquanto toma uma cerveja. "Quer outra ironia? A clientela, aqui, ficou pobrezinha. Fraca de bolso, caída. Gente do Brasil real na Real Brasil..." Ergue o copo e brinda, melancólico, o trocadilho.
Catarinense, Arnaldo comprou o estabelecimento em março de 1981. Os antigos donos, portugueses, batizaram a padaria com o nome que, hoje, soa tão sugestivo. Na época, desejavam apenas homenagear a realeza brasileira.
"Tempos de rei...", prossegue Arnaldo. "Já vivi, sim, períodos melhores. Por exemplo: julgava-me de classe média e trocava sempre de carro -modelos bacanas, de luxo. Pagava à vista ou, no máximo, em cinco prestações. Agora... Peguei um Golzinho há três anos, para saldar em 24 meses, e não faço idéia de quando conseguirei outro."
O comerciante lembra que, "em 1987, 88", somava 11 funcionários e gastava 400 quilos de farinha de trigo por dia. Atualmente, consome 50 quilos e dispõe de seis empregados, ganhando entre R$ 300 e R$ 500. "Vou fechar 2002 com o pior faturamento desde que assumi o negócio. Uma queda de 30% em relação a 2001. Parte de minha freguesia está sem ocupação e pensa um bocado na hora de soltar o dinheiro."
Tamanha crise empurrou Arnaldo "para o colo do PT". "Nunca imaginei que votaria em candidato do partido. O Lulinha trabalha com a gente há duas décadas. Virou quase da família. Nem por isso me animava a apoiar o irmão dele. Mas a coisa piorou de um jeito que acabei entrando na onda da mudança."

Seca
Passa um pouco das 15h, e Lulinha continua irredutível. "Não abro minha boca." É, talvez, o mais teimoso dos 13 filhos que o estivador Aristides Inácio da Silva gerou com a segunda mulher, Valdomira Ferreira de Góes, a Mocinha. Lula nasceu do primeiro casamento (com Eurídice Ferreira de Melo, a dona Lindu).
"Mudança", reitera, do caixa, Cléia Melilo, 29, outra sócia da padaria. "Tudo no Brasil precisa mudar. Os juros, o preço do trigo, o nível de desemprego. Morro de medo que o país se torne uma Argentina." Põe-se, então, a elogiar o novo presidente.
"Opa! Falando bem do homem?" -interrompe, gaiato, o funcionário José de Arimatéia. "Antes das eleições, tratava o Lula como analfabeto, resmungava que o barbudo não sabia ler." Cléia, sem graça, simplesmente sorri: "Eeeeeeeu?".
Lavando pratos, José -potiguar, 23 anos, dois salários mínimos por mês- diz que sempre votou no PT. "O partido dos sofredores." Sobre Lula, deposita esperanças exageradas. "Vai acabar com a seca. O Nordeste é um poço de água. Basta ter coragem e furar o solo. Lula terá. Ele não teme os coronéis."
O desenhista Ataíde Dimas, 62, pernambucano, também exalta "a bravura do conterrâneo". Cliente da panificadora desde 1999, costumava votar em Enéas. "Políticos tradicionais me desanimam. Espie o FHC. Prometeu que ia fazer e acontecer, mas não fez pirulito. Quando o Enéas desistiu de concorrer à Presidência, ponderei: "No Serra, não adianta investir. Chegou a vez do Lula". Fui gostando da idéia e decidi lhe confiar meu voto. Não me arrependo."
Agora, aposta tanto "no sangue dos Silva" que pretende transformar Lulinha em vereador. "Estou tentando convencê-lo. O cabra reúne todas as condições para emplacar: jamais faltou no serviço, jamais maltratou um freguês."
Quase 17h. O expediente de Lulinha vai terminar. Ainda assim... "Sem papo, repórter!" Mostra-se, no entanto, muito menos contrariado. Provoca a morena que lhe pede um café: "Minha princesa, conhece a Folha? Dê uma entrevistinha rápida. Elogie nosso futuro presidente". "O Lula?", indaga a moça. "Se ele me tirar da merda em que me encontro..."

Jogo do bicho
Na quarta-feira, o gelo finalmente se desfaz. Brincalhão, Lulinha avisa: "Hoje vou falar. Mas só se me arrumarem um cachê. Cascalho, para a carne seca, o bacalhau".
Explica, primeiro, por que anda resistindo à imprensa. "Logo depois das eleições, sofri uma perseguição danada. Jesus do céu! Incomoda, assusta. Sem contar o risco de publicarem bobagem. Não quero atrapalhar meu irmão, compreende?"
Solteiro, mora em Vicente de Carvalho, onde nasceu. Divide a casa própria, de três cômodos, com a mãe. Nos fundos do terreno, há outro casebre, do sobrinho. A família não possui carro nem telefone. "Ou melhor, tem a minha BMW." Uma "valente bicicleta, o transporte preferido do brasileiro".
Escola, Lulinha mal frequentou. Completou o primário e ponto. Já trabalhou de empacotador em supermercado, de engraxe e na construção civil. Como copeiro da padaria, recebe R$ 300 por mês -"grana de virar a cabeça, hein?"
Viu Lula de perto somente uma vez, em 1978, quando Aristides morreu. "Vivia numa favela e estava jogando bola, todo sujo de areia. Lula apareceu em um Chevette. "Quem é o João?", perguntou. "Eu", respondi. E ele: "Sou teu irmão, pô! Soube da morte do pai"."
Nunca mais conversaram. "Não importa. Mesmo à distância, o admiro. Fico torcendo para que acerte."
Há 25 dias, Lulinha ingressou no PT. "Assinei a ficha de filiação. Não entendo nada de política, mas gostaria de contribuir, participar das reuniões." Candidatar-se, como sugere Ataíde? "Não, por enquanto não."
De repente, se levanta. "Chega de interrogatório! Foi um prazer." Antes de partir, confessa: "Ontem à tarde, anotei a placa do carro de reportagem -4977." Planejava jogar no bicho. "De bobeira, recuei." Se tivesse apostado... "Deu 6977." Ganharia na centena.


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