São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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NO PLANALTO

A fantástica história do assassinado que se suicidou

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

17 de outubro de 2002. Uma quinta-feira. Noite densa. Ponteiros à altura das 23h30. O apelido do local -"Passarela do Álcool"- emprestava à cena litorânea uma atmosfera de imprevisibilidade que contrastava com a promessa insinuada no nome da cidade -Porto Seguro (BA).
Tudo ocorreu supostamente à volta de uma mesa de bar. Nela se consumia bebida cuja designação -"capeta"- tampouco sugeria bom agouro. Deu-se o indesejado: um estrepitoso rififi.
De concreto, de palpável mesmo, sabe-se que foi produzido um cadáver. Desceu à cova o garçom Nelson Simões dos Santos, 39. Foram à prisão sete garotos, dois deles menores.
Deu na TV, nos jornais, nas revistas, em toda parte: os jovens, todos de Brasília, teriam matado Nelson por conta de uma desavença banal. Como o "capeta" que os embalava era produzido em barraca defronte, pediu que desocupassem a mesa. Desatendido, insistiu. Foi surrado à morte.
Ouviram-se na delegacia, já no dia seguinte, quatro testemunhas. Narrativas curtas. Mas contundentes. Impregnadas de detalhes. Tudo a apontar para a culpa dos rapazes.
Decorridos três dias, as mesmas testemunhas foram reinquiridas. Não mais na delegacia. Falaram a um juiz, sob os olhares de promotores e advogados. Súbito, refizeram declarações.
Algo de muito estranho se passa sob o sol de Porto Seguro, eis o que se pretende demonstrar. A cena do assassinato, reconstituída pela polícia em cores vívidas, vai sendo, aos poucos, envolvida por uma perigosa camada de névoa.
Um fenômeno para o qual a imprensa, depois do estardalhaço inicial, não vem dando, como de praxe, a devida atenção. Tome-se o exemplo da testemunha Bonifácio Pereira Aguiar. É garçom, colega do morto. Presenciou a cena.
O que disse na delegacia? Armado o sururu, "os rapazes fizeram uma roda, com Nelson no meio." Aplicaram "golpes com as cadeiras". Desferiram "socos e pontapés". "Sem nenhuma pena." Depois, Nelson ao chão, saíram "em desabalada carreira". Identificou Thiago Barroso Marnet como a pessoa que "empurrou" Nelson e "gerou" o tumulto.
E diante do juiz, o que disse o mesmo Bonifácio? Não leu o depoimento que prestou na delegacia. "Não viu os rapazes colocarem Nelson no meio de uma roda, desferindo socos, pontapés e cadeiradas". "Não viu Thiago empurrar o garçom Nelson".
Ouça-se agora a voz de outra testemunha, Balbino Inácio de Souza. Na delegacia: presenciou a agressão. Um dos rapazes "segurava o garçom pelo pescoço". Outro "segurava as pernas". Os demais "aplicavam socos, pontapés e cadeiradas". Identificou Fernando Ferreira von Sperling como o adolescente "que segurava as pernas de Nelson".
O mesmo Balbino na frente do juiz: Assinou o depoimento dado à polícia "sem ler". Viu a agressão, mas "não consegue identificar nenhum dos acusados". "Não pode afirmar ter visto Fernando envolvido na briga."
Mais uma testemunha: Clemente de Souza Santos. À polícia: "os rapazes fizeram um círculo em volta do garçom". Agrediram-no com "socos, pontapés e cadeiradas". "Uma das cadeiras atingiu a cabeça do garçom". Reconheceu, um por um, todos os agressores.
Ao juiz, Clemente disse: não leu o depoimento dado na delegacia. Reconhece todos os acusados, mas só viu um deles, Fernando von Sperling, "desferindo pontapés no tórax" do morto. Não sabe se os demais "ingressaram na briga". Negou ter feito menção a um cerco em torno da vítima. "Não viu cadeira nenhuma atingir a cabeça" do garçom.
De Reinalva Cruz de Oliveira, nova testemunha, para a polícia: viu "um rapaz moreno, de cavanhaque, atirar uma cadeira de madeira contra o garçom, atingindo-o na altura do tórax". Reconheceu Victor Tadeu Antunes Araújo como "o rapaz que desferiu uma cadeirada no garçom". Viu "umas dez pessoas participando das agressões".
De Reinalva para o juiz: "Assinou sem ler" o primeiro depoimento. Enxergou Victor "segurando uma cadeira, cujos pés apontava na direção de alguém". Mas não o viu "atingir nenhuma pessoa". Ia passando, quando se deu conta do "tumulto". "Mas não percebeu que se tratava de uma briga". Achou "que era alguém arrumando uma mesa". "Não viu ninguém batendo em ninguém."
Nesta segunda-feira, serão retomados os depoimentos do caso da morte de Nelson Simões dos Santos. Há na fila algo como 30 pessoas, 12 das quais testemunhas oculares. Convém prestar atenção à inusitada brisa que vem da Bahia.
Alguém precisa investigar a investigação de Porto Seguro. Em homenagem à lógica. A julgar pelo andamento do inquérito, logo se concluirá que o garçom socou o próprio tórax, chutou a si mesmo e, mamado de "capeta", enfiou a cabeça num pé de cadeira. Suicidou-se, o pobre.


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