São Paulo, domingo, 16 de julho de 2006

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ELIO GASPARI

Martin Luther não é um Burger King


O líder negro americano entrou como Pilatos no Credo do manifesto contra as cotas raciais nas universidades

MÁ A IDÉIA a dos redatores do manifesto contra os projetos de Lei das Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial de temperá-lo com palavras de Martin Luther King como se elas fossem ketchup e mostarda do Burger King.
Escreveram o seguinte:
"Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor de sua pele, mas pela força de seu caráter".
King disse quase isso:
"Eu tenho um sonho, no qual minhas quatro pequenas crianças viverão num país onde não serão julgadas pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter".
O discurso do sonho de King foi pronunciado em 1963, em Washington, aos pés da estátua de Lincoln, diante de 200 mil pessoas. Suas crianças eram negras. Em alguns Estados americanos "pessoas de cor" não eram servidas em lanchonetes de brancos. Não conseguiam votar. Quando conseguiam, não achavam candidatos. Uma família negra tinha renda equivalente a pouco mais que a metade de uma família branca, como no Brasil de hoje.
Semanas antes, o presidente John Kennedy tentara dissuadir a liderança negra de convocar a manifestação, pois ela podia levar a "uma atmosfera de intimidação". King respondeu-lhe que jamais organizara uma coisa que não fosse chamada de inoportuna.
A etiqueta dos manifestos e das referências recomenda que não se amarrotem frases ou conceitos de um cidadão dentro de um contexto estranho ao seu pensamento. É possível que King tivesse curiosidade em conhecer as idéias do comissário Tarso Genro e do professor Peter Fry, sobre "cotas sociais". Mesmo assim, exageraram ao colocá-lo num discurso onde se diz que "políticas dirigidas a grupos "raciais" estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância".
King estava noutra. Defendia a criação de programas sociais destinados a indenizar os negros pelos séculos de escravidão. Ele disse o seguinte:
"Sempre que esse assunto aparece, alguns dos nossos amigos ficam horrorizados. O negro deve ser tratado como um igual, mas não tem que pedir mais nada. Isso parece razoável, mas não é realista. É óbvio que, se um homem chega com 300 anos de atraso ao ponto de largada de uma corrida, terá que fazer um tremendo esforço para alcançar o outro corredor. De qualquer maneira, não pretendo que um programa de ajuda econômica beneficie só os negros. Ele deve beneficiar os excluídos de todas as raças".
O manifesto contra a Lei das Cotas diz: "O argumento é conhecido: temos um passado de escravidão que levou a população de origem africana a níveis de renda e condições de vida precárias. Em decorrência disso, haveria a necessidade de políticas sociais que compensassem os que foram prejudicados no passado, ou que herdaram situações desvantajosas. Essas políticas se justificariam porque viriam a corrigir um mal maior. Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis conseqüências das cotas raciais."
Muito diferente do que dizia King:
"Uma sociedade que fez coisas especiais contra o negro durante centenas de anos agora precisa fazer alguma coisa especial por ele, equipando-o para competir numa base justa e igual".
A ligeireza que plantou um caco de Martin Luther King no texto do manifesto poderia permitir a sua substituição (de forma desonesta) por outra citação, parecida com a argumentação do manifesto. Por exemplo:
"Sem respeito pelo consentimento dos cidadãos, mediadores intrometidos ameaçam provocar mudanças imediatas e revolucionárias no nosso sistema escolar. Se isso acontecer, será a destruição do sistema público de educação em alguns Estados".
Trata-se de um trecho da proclamação de 19 senadores do Sul dos Estados Unidos contra a decisão unânime da Suprema Corte que detonou a segregação racial nas escolas americanas. O sonho dos redatores do manifesto, seja qual for, não é o mesmo de King.

Novos larápios
Circula entre os desencantados da política a idéia segundo a qual votando-se em quem nunca foi deputado federal limpa-se a Câmara. Infelizmente, aquele plenário só limpa se os eleitores varrerem os larápios.
De 21 deputados envolvidos na máfia das ambulâncias, dez estão no seu primeiro mandato. Portanto, se o critério da virgindade federal tivesse sido aplicado à eleição passada, teria dado em nada.

Facção Rebelo
O presidente da Câmara, Aldo Rebelo, tem gosto pela língua portuguesa. Exatamente por isso deveria parar de se referir a embates parlamentares como "brigas de facções". Ele sabe a diferença entre PC do B e PCC. Aldo sabe também que preside uma Casa onde se chocam partidos. Se lá há bandidos, ele bem os conhece.

Compra-se usado
"Nosso guia" resolveu construir uma base parlamentar com alianças com outros partidos. Investe pouco no PT. Como ensina Marcola, o bandido do PCC: "É mais fácil comprar um deputado do que fazer um".

Cautela
Para ter uma idéia do prestígio das polícias estaduais, o equipamento eletrônico cedido pelo governo americano à PF não pode ser compartilhado com elas. A restrição pode ter justificativas, mas, se "nosso guia" bobear, um dia as agências de segurança e informações dos EUA abrem uma filial na PF. Em 1970, um funcionário do consulado americano lia confissões no DOI-Codi de São Paulo. Eram papéis tão secretos que até hoje não apareceram. Foi posto para fora.

Comam bolo
Vem aí o filme "Maria Antonieta", de Sophia Coppola. Repete a maldita frase atribuída à rainha, recomendando aos franceses que não tinham pão que comessem brioches.
Ela nunca disse isso. A patranha deriva de um escrito de Jean Jacques Rousseau, de 1776, no qual ele se referiu a uma "grande princesa".
Nessa época, Maria Antonieta tinha 11 anos e vivia em Viena. A frase teria sido dita pela bisavó de Luís 16.
Para os registros da história de Pindorama: de volta de Bruxelas no dia em que a bandidagem de São Paulo queimou cem ônibus e matou oito pessoas, o ex-governador Geraldo Alckmin, gripado, fez enorme esforço, mas chegou a tempo na festa de aniversário da mulher, num restaurante. Comeu-se um bolo com a forma e as cores de bandeira brasileira.

O valor de Marx
O marxismo está em alta, para quem tem dinheiro. Um cidadão russo tinha um exemplar da terceira tiragem da primeira edição do Manifesto Comunista, publicado por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848. Levou-o a leilão na casa Sotheby's de Londres e faturou US$ 165 mil. Em 1986, um exemplar da segunda tiragem (sem a capa) valeu menos da metade disso.
Para que se possa fazer um paralelo, um carta da filha de Rasputin, o bruxo da corte czarista, saiu por US$ 4.000.

Sinal amarelo
Pelo menos dois ministros de STF desconfiam que é melhor liberar as investigações que associam "altos companheiros" ao enredo que terminou no assassínio do prefeito Celso Daniel, de Santo André.


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