São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 1999

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ELIO GASPARI
O real e a teoria de Minoru Genda

A desvalorização do real resultou do fracasso da política da ekipekonômica. Ele não foi desvalorizado pelo professor Francisco Lopes nem pelo pipoqueiro da esquina. Ele não flutuou pela vontade do Banco Central nem do governador Itamar Franco. O que houve (e o que poderá haver) foi enunciado, há dois anos, pelo presidente do Banco Central de Israel, Jacob Frankel (Universidade de Chicago). Com a autoridade de quem salvou a economia de seu país ele dizia: "Se for necessário desvalorizar o real, e o governo não o fizer, o mercado haverá de fazê-lo". Na semana passada, a opção que o governo teve foi a de desvalorizar mais ou desvalorizar menos.
O preço do fracasso já foi grande e agora resta rezar para que o estrago seja contido. Os mesmos bancos que foram cortejados pelo governo estão se fartando num ataque à moeda brasileira. A credibilidade que se deu aos seus corretores transformou-se numa carta de descrédito. Em setembro passado, quando as perdas de reservas já estavam conduzindo a um colapso, a corretora americana Merrill Lynch ajudou o governo a propagar otimismo. Na quinta-feira passada, a mesma Merrill Lynch convidava os investidores a fugir do papelório brasileiro. Não fez isso porque é malvada, mas porque esse talvez seja um bom negócio e ela está aí para dar dinheiro aos seus fregueses. Estava operando expectativas em setembro, quando brincava de Poliana.
FFHH, Pedro Malan e Francisco Lopes foram parte na construção do desastre e agora só resta ao andar de baixo torcer para que consigam sair dele. Aqui e ali, contudo, já se começam a semear teorias de que se chegou ao ponto a que se chegou porque faltaram reformas, mudanças e coragem para radicalizar a política praticada nos últimos quatro anos. É moeda falsa. Em primeiro lugar, porque o governo teve o que pediu. Em segundo lugar, porque um dos mais velhos truques dos fracassados é precisamente atribuir as desgraças que produziram à falta de coragem dos outros.
Trata-se da síndrome de Minoru Genda. Genda foi um brilhante oficial de Marinha do Estado-Maior japonês e a ele se deveu o planejamento do traiçoeiro ataque aéreo à base naval americana de Pearl Harbor. Deu no que deu, mas 30 anos depois, quando um curioso lhe perguntou se percebera o tamanho da besteira feita em 1941, ele respondeu:
-Não. O ataque à base estava certo. Se houve erro, ele esteve em não seguirem minha recomendação. Eu propus que houvesse um segundo bombardeio.

Todo mundo ganha com a Vigilância
Produziu-se na semana passada mais uma vitória da aliança do governo com a oposição no Congresso. A medida provisória que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária foi aprovada por aclamação. Poucas legislaturas conseguiram tantos resultados na área da saúde quanto a que está encerrando os seus trabalhos. Regulamentou a selva dos planos de saúde, acabou com o comércio de sangue, criou a lei dos medicamentos genéricos e agora deu pernas à Vigilância Sanitária.
A indústria farmacêutica, que tisnou sua credibilidade quando deixou de gritar diante do crescimento do mercado negro de remédios falsificados, poderá vir a ser fiscalizada de forma mais eficiente. A Secretaria de Vigilância, na qual há 18 mil processos engarrafados e apenas 13 funcionários cuidando das licenças de medicamentos, será jogada numa estrutura que disporá de recursos e meios para trabalhar direito.
O Ministério da Saúde elevou os preços ridículos que o Estado brasileiro cobrava pelas licenças de funcionamento de empresas e pelo registro de remédios. A taxa para a comercialização de novos medicamentos era de R$ 1.500. Passou para R$ 80 mil, no caso de grandes empresas. (As médias e pequenas pagarão menos. As microempresas pagarão 10% das taxas.)
Dá gosto saber que se passou a cobrar uma taxa anual de R$ 100 mil para a comercialização de marcas de cigarro. Até agora, vendendo um produto que faz mal a saúde, não pagavam um só ceitil.
As novas taxas servirão para sustentar a máquina da agência. Ela herdará 1.100 funcionários e poderá contratar mais 150. Infelizmente, só um louco é capaz de achar que, havendo a agência, haverá vigilância. Pode ser que essa história acabe em pizza, mas, uma coisa é certa, depois que o senador José Serra pôs o pé no ministério, muita gente tirou a mão do bolso dos consumidores.
A agência tem a melhor das intenções, mas a medida provisória que a criou veio contaminada pelo delírio megalomaníaco da burocracia. Manteve-se a velha obrigatoriedade da emissão da "guia de traslado de cadáver em embarcações, aeronaves e veículos terrestres em trânsito interestadual e internacional". O controle de epidemias justifica o cuidado nos traslados internacionais, mas se vai continuar a azucrinar o contribuinte, mesmo depois de ele ter passado para a jurisdição do padre eterno. Um sujeito pode morrer num extremo do Amazonas e ser enterrado no outro, a 1.000 quilômetros de distância sem precisar da guia. Se ele tem a falta de sorte de morrer em Araranguá (SC), para ser enterrado em Torres (RS), a 50 quilômetros de distância, vai precisar de licença do governo. Ia-se cobrar R$ 150 aos defuntos, mas, na versão final, a MP isentou-os da taxa, mantendo a burocracia. (Quem pensou que pode se livrar da guia pedindo que seja cremado, enganou-se. Até as cinzas precisam do papelote.)

Vão torrar o café da Viúva em leilão fechado
Reúne-se amanhã o Conselho Deliberativo da Política de Café. Vai decidir se mantém uma série de leilões, nos quais se pretende vender 770 mil sacas de propriedade da Viúva. Um caso exemplar de favorecimento indireto e despropositado em nome do estímulo à industria nacional.
No mundo dos mortais, quem tem uma saca de café vai à praça, diz que o vende e recebe o que ele vale. Uma saca do tipo de café velho que o governo vai leiloar pode valer um pouco menos de US$ 100 por saca, com pagamento à vista. Sua mercadoria vale, portanto, algo como US$ 77 milhões. A cada dia as Bolsas de Mercadorias de todo o mundo compram e vendem café por meio desse sistema.
Com as sacas da Viúva, a coisa será diferente. Só poderão participar da hasta empresas brasileiras fabricantes e exportadoras de solúvel. O que a venda de café tem a ver com essa exigência, é um enigma. É o mesmo que leiloar algodão só para fabricantes de roupas. A indecifrável restrição faz com que o número de empresas habilitadas a vencer o leilão não passe de quatro. Além disso, o comprador terá três anos para pagar o lance, com juros fraternais de 12% ao ano. Por que se vai vender a prazo uma coisa que se pode vender à vista, também não se sabe.
O tipo de café que será leiloado é muito velho para ser transformado em solúvel. Para o comprador, será muito mais racional passá-lo adiante, comprando outra quantidade (maior) de sacas do tipo apropriado. Feita assim, a operação resultará num estímulo aos fabricantes de café solúvel. Eles compram o café da Viúva barato, a prazo, e o trocam, a um preço um pouco maior, à vista. Com isso se capitalizam.
Mesmo admitindo-se que essa operação viesse a dar emprego a 1 milhão de pessoas, falta-lhe nexo. Se o governo quer ajudar a indústria brasileira de café solúvel, vai ao mercado, vende o seu café, separa a parte que pretende usar como estímulo aos industriais e convida o público para a cerimônia de entrega dos cheques.
Cultivar leilões fechados preserva a impressão de que a choldra é boba, quando quem está nesse papel, há muito tempo, é o Ministério da Indústria e do Comércio. Mapa cambial
Num cenário catastrófico, o presidente Banco Central, Francisco Lopes, seria o último a apoiar a adoção de medidas de controle de câmbio.
O penúltimo seria o ministro Pedro Malan.

O preço da bondade
Quem não mata morre.
Há três anos, na trapalhada do vazamento de informações guardadas na pasta rosa, na qual estavam os segredos políticos do falecido Banco Econômico, FFHH pensou em demitir o então diretor de Normas do Banco Central, Cláudio Mauch. Como não gosta de mandar pessoas embora, manteve-o.
Depois disso, verificou-se que um fax do Banco Bozano,Simonsen, chegado ao Banco Central sem indicação formal de destinatário, acabou batendo em sua mesa. Era parte de uma operação que poderia levar ao desmanche do patrimônio do Econômico.
No segundo semestre de 1995, Mauch foi informado pelo dono do Banco Nacional, Marcos Magalhães Pinto, de que seu banco tinha operações-fantasma de crédito, destinadas a maquiar seus balanços. (Eram 600 contas falsas, nas quais se movimentavam bilhões de reais inexistentes). Nessa ocasião, Mauch era diretor de Fiscalização do BC. Empurrou o caso com seu discernimento e as fraudes continuaram.
FFHH manteve Mauch no cargo.
Na quinta-feira passada, depois de ter negociado sua saída da diretoria do BC há vários meses, Mauch anunciou abruptamente que iria embora. Fez isso no meio da crise cambial e, com um refinamento chinês, no meio do pregão. Teve 15 segundos de fama nas agências de notícias de todo o mundo e ajudou a derrubar a pouca credibilidade da política do governo
Na sexta, Mauch mudou de idéia e FFHH deixou-o ficar no cargo.
Mauch não morre, mata e fica.

Todos empregados
Está em marcha o programa de combate ao desemprego. O professor José Roberto Mendonça de Barros, que se demitiu heroicamente da Secretaria de Comércio Exterior, ficou pouco tempo sem transacionar serviços com a Viúva. O ministro Celso Lafer contratou-o por seis meses, para estudar o "adensamento da cadeia produtiva". Falta contratar alguém que saiba o que é isso.
Desempregou-se o ministro da Ciência e Tecnologia, companheiro José Israel Vargas. Está reempregado, como assessor especial do doutor Clóvis Carvalho, no Gabinete Civil.
O novo ministro da Ciência e Tecnologia, Luiz Carlos Bresser Pereira, resolveu acumular as funções de presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico, o CNPq. Ótima idéia.
E o que aconteceu com o doutor José Galizia Tundisi, que ocupava o cargo? Foi reempregado, como assessor especial de Bresser.
O professor Tundisi entrou para a história da pesquisa científica brasileira pelo orgulho com que cortou as bolsas de estudo no exterior de 500 para 65. Cada uma dessas bolsas custava à Viúva algo como US$ 1.500 por mês.
A política de preservação de bons empregos custará, só no caso do companheiro Vargas e do doutor Tundisi, o equivalente a pelo menos dez bolsas de doutorado. O professor Pedro Malan, que estudou na Universidade de Berkeley com a ajuda do erário, sabe o que significa para a administração pública sustentar caciques em Brasília à custa da pós-graduação dos índios.

Entrevista

Paulo Cunha
(58 anos, presidente do Grupo Ultra, 7.000 empregados, faturamento de R$ 1,3 bilhão em 1998)
O câmbio virou. Era o que o senhor sugeria, há quatro anos. Vai resolver?
Acho que estamos no caminho da construção de um círculo virtuoso que nos pode levar à retomada do progresso. O presidente Fernando Henrique Cardoso se desamarrou, e o governo está governando. Íamos para o buraco, paralisados por uma política cambial que se atribuía dons sobrenaturais. Há uma observação do professor Noam Chomsky, segundo a qual o desafio da inteligência humana está em lidar com problemas e mistérios. Os problemas ela resolve. Os mistérios a inibem. O câmbio passou de mistério a problema, e isso é ótimo, porque restabelece a racionalidade do debate. O governo não tem o dom de acabar com os problemas, mas tem a capacidade de alterar o quadro de alternativas da questão econômica. Vai dar muito mais trabalho, mas é na escolha certa das alternativas que estará a nossa capacidade de resolver os problemas.

Qual o principal problema?
De longe, é a questão das contas externas. Se imaginarmos a economia brasileira como uma empresa, ela compra mais do que vende. Em 1994, as nossas contas fecharam com um déficit de US$ 1,7 bilhão. Em 98, esse déficit foi de US$ 33 bilhões. No período, cavamos um buraco de US$ 110 bilhões. Para tapá-lo, tomamos dinheiro emprestado. Ao ver a persistência e o tamanho do déficit, os credores acham arriscado emprestar e cobram juros mais altos. A empresa passa a se endividar cada vez mais, pagando mais caro pelo dinheiro. Nosso problema sempre esteve nas contas externas. Foi o seu desequilíbrio que fez subir os juros e será o seu equilíbrio que haverá de baixá-los. A mudança do câmbio é apenas parte da solução. Era necessária, mas não é suficiente.

Como resolver?
Vendendo mais e comprando menos. Temos que aumentar as exportações e conter as importações. Dizer isso é muito fácil. Fazer, é outra coisa. O governo já deu um sinal de reordenamento de suas prioridades. O Ministério do Desenvolvimento pode vir a ser um canal eficiente, mas a solução só virá havendo trabalho. Nós estávamos na situação do avião ligado no piloto automático. A tripulação podia ficar conversando e ele ia em frente. Só que ia bater com o nariz no Pão de Açúcar. Agora, será necessário pilotar. Vai dar um trabalho danado, mas, fora disso, não há remédio. Há centenas de providências que podem ser tomadas, sempre respeitando-se as normas da Organização Mundial do Comércio. Tivemos fábricas fechadas por causa da importação de mercadorias subsidiadas. No lado das exportações, precisamos começar hoje a discussão da sobrecarga tributária que mutila nossos produtos. Os impostos tornam o produto brasileiro mais caro que o estrangeiro numa percentagem que varia de 4% a 8%. A troco de nada, estamos produzindo empregos lá fora e fechando postos de trabalho aqui dentro. Vínhamos numa situação em que o empresário via o concorrente fechar o seu negócio e passava a pensar se não era bom ele também fechar o seu. Se o empresariado perceber que a produção será remunerada, o mesmo sujeito que via o concorrente fechar o vê investindo. Nessa hora, o seu instinto o leva a buscar uma maneira de investir. É por aí que podemos chegar a mais produção, mais exportações e mais empregos.

A voz do Jockey
Um empresário carioca descobriu um novo indicador de atividade econômica da região e do seu andar de cima. É o estacionamento do Jockey Club, no centro do Rio. Ele chega ao edifício às 9h45, pontualmente. Até setembro passado, só encontrava uma boa vaga a partir do 11º andar. Desde outubro, consegue estacionar a partir do sétimo.



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