São Paulo, domingo, 17 de março de 2002

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NO PLANALTO

Receita audita arrecadadores do caixa dois de FHC

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Os arquivos da sala 201 do prédio anexo à pasta da Fazenda guardam um dos mais preciosos segredos da República. Ali funciona a Cofis (Coordenação de Fiscalização da Receita Federal). O órgão empreende, há cerca de oito meses, uma auditoria nas declarações de rendimentos de pessoas que coletaram dinheiro para o caixa dois das campanhas eleitorais de Fernando Henrique Cardoso.
Oito nomes compõem a lista sob auditagem. Entre eles, os ex-ministros Luiz Carlos Bresser Pereira (Administração), Andrea Matarazzo (Secretaria de Comunicação, hoje embaixador em Roma) e até Sérgio Motta (Comunicações), morto em 1998. Vasculham-se ainda as declarações de Ricardo Sérgio de Oliveira, ex-diretor do Banco do Brasil. É arrebanhador de fundos eleitorais também da campanha de José Serra ao Senado, em 1994.
Submetidas ao pente-fino do setor de inteligência da Receita, as declarações de Imposto de Renda dessas pessoas apresentaram inconsistências. Daí a abertura da auditoria. Funciona assim: a Receita intima os envolvidos, pede que entreguem documentos adicionais, analisa-os e dá o veredicto, que pode ser de inocência.
O fisco age a pedido do Ministério Público. A inspeção concentra-se nos anos de 1998 e 1999. No caso de Sérgio Motta, as notificações são enviadas à viúva Wilma Motta, responsável pelo espólio do ministro.
A apuração que envolve Ricardo "no limite da irresponsabilidade" Sérgio chama especial atenção. Ele movimentou no biênio 98/99 quantia superior a R$ 4,5 milhões, o que equivale a algo como três Jorge Murad e meio, para utilizar unidade monetária muito em voga.
Descobriu-se o tamanho das contas bancárias de Ricardo Sérgio graças às pegadas deixadas pela CPMF, o imposto do cheque. Tudo estaria bem não fosse por um detalhe: as declarações do ex-diretor do Banco do Brasil anotam rendimentos incompatíveis com o volume de dinheiro que transitou por suas contas.
Ricardo Sérgio foi informado da encrenca em 6 de outubro de 2001. Recebeu em casa um documento chamado "termo de início de fiscalização". O papel o intimava a fornecer documentos e informações.
No item número sete, os auditores da Receita anotaram: "Apresentar extratos bancários de conta corrente e de aplicações financeiras, cadernetas de poupança, de todas as contas mantidas junto a instituições financeiras no Brasil e no exterior (...)".

"Devassa violadora"
A resposta de Ricardo Sérgio foi postada no dia 26 de outubro de 2001. Ao manuseá-la, os fiscais notaram uma ausência crucial: o envelope pardo não continha os extratos.
Em 28 de janeiro de 2002, Ricardo Sérgio recebeu novo documento da Receita. Chama-se "termo de reintimação fiscal". Os auditores pediram, uma vez mais, os extratos. Datada de 14 de fevereiro de 2002, a resposta do arrebanhador de fundos do alto tucanato deixou evidente que não deseja sair de seu habitat preferencial: a sombra. Ele foi categórico:
"O pleito agora formulado por V. Sas., de entrega de extratos bancários indiscriminados (...), sem qualquer indicação de ato ou fato específico que se pretenda apurar, constitui devassa violadora do meu direito constitucional e legal ao sigilo bancário. Por não terem V. Sas. apresentado qualquer justificativa para que eu abra mão de tal direito, deixo de atender à reintimação (...)".
Receando que a Receita solicitasse diretamente aos bancos os dados que não deseja ver expostos, Ricardo Sérgio apressou-se em constituir advogado. Chama-se Luiz Rodrigues Corvo.
É titular da banca Corvo Advogados, de São Paulo. Entrou, em 25 de fevereiro, com ação na Justiça Federal de Brasília. Pediu e obteve liminar que breca temporariamente o ímpeto do fisco. Expediu-a a juíza Maísa Giudice, no dia 28 de fevereiro.
O repórter chegou à devassa da Receita seguindo rastros de tom bordô gravados numa toalha de mesa elegante de São Paulo. Dois personagens notórios dividiram uma garrafa de Petrus de boa safra. Um é empresário. O outro, procurador das arcas de José Serra. Jantaram juntos há cerca de três semanas.
Mordido à altura da sobremesa, o empresário devolveu a dentada. Mencionando o nome do secretário da Receita, Everardo Maciel, queixou-se da sanha do fisco.
Ao relatar o diálogo a dois amigos, o coletor de fundos de campanha compadeceu-se do drama de seu alvo. Sentia, ele próprio, o bafo dos fiscais a esquentar-lhe a nuca. Compõe a lista de pessoas intimadas por Brasília.
A ação que agora começa a dar frutos tem origem remota. Nasceu no final de 2000, a partir de reportagem da Folha. Os repórteres Wladimir Gramacho e Andréa Michael trouxeram à luz o conteúdo de planilhas eletrônicas do comitê de FHC. Descobriu-se que a campanha da reeleição, em 1998, fora abastecida por um caixa dois de pelo menos R$ 10,12 milhões.

Roseana e Murad
Chama-se Guilherme Schelb o procurador que conduz as apurações. Ele queria que a Receita esmiuçasse também os dados fiscais de empresas. Mas as fiscais entenderam que não havia justificativa para tanto. Concentraram os esforços na análise de dados relativos a pessoas físicas.
Completam a relação Egydio Bianchi (ex-presidente dos Correios), Ademar Cesar Ribeiro (ex-diretor do antigo Bamerindus), Luiz Fernando Furquim (publicitário) e Humberto Motta (Associação Comercial do Rio de Janeiro).
Partiu-se de uma listagem maior, com 16 nomes. Porém, em análise preliminar, o fisco excluiu seis contribuintes (Kati Almeida Braga, Eduardo Eugênio Gouveia Vieira, Mário Petrelli, Jair Bilachi, Pedro Pereira de Freitas e Pedro Paulo Popovic). Avaliou-se que as declarações deles não continham indícios que justificassem um aprofundamento da análise.
Bresser Pereira adotou procedimento inverso ao de Ricardo Sérgio. "A Receita me pediu toda a documentação, inclusive extratos bancários, que não sou obrigado a mandar. Mas eu mandei tudo", disse o ex-ministro. "Acho pouco provável que descubram alguma irregularidade nas minhas declarações."
Egydio Bianchi age do mesmo modo: "Estou absolutamente tranquilo. Portanto, colaboro com a autoridade fiscal, fornecendo a ela os elementos solicitados", diz. Andrea Matarazzo também: "Mandei todos os esclarecimentos, sem problema nenhum".
Ricardo Sérgio argumenta que é comum que a Receita faça confusão entre renda e movimentação bancária. Pelas contas que fez, acha que abrigou em suas contas importância bem superior aos cerca de R$ 4,5 milhões detectados pelo fisco.
A Receita tem o direito de pedir o que quiser, diz ele. Mas não entregará o que, a seu juízo, a Constituição diz que não é devido. Para ele, o ônus da prova é da Receita. Seu raciocínio é corroborado pelo advogado. Corvo diz que, para ter acesso a extratos, os fiscais precisam obter ordem judicial.
Exceto por Luiz Fernando Furquim e Ademar Cesar Ribeiro, que não foram localizados, todos os demais investigados receberam telefonema do repórter. Alguns não deram resposta aos recados.
Nos próximos dias, a Receita passará a se ocupar também de pessoas caras à cúpula do PFL: a presidenciável Roseana Sarney e seu marido, Jorge Murad. Por solicitação do Ministério Público (sempre ele), serão revirados os dados fiscais de empresas como Lunus, Agrima, Nova Holanda e Usimar. Compõem o nicho do escândalo da Sudam adstrito a Jorge Murad e cia.
As investigações se processam em meio a pressões que buscam encurtar a permanência de Everardo Maciel na Receita. É vigoroso o movimento em defesa de sua transferência para a pasta da Previdência.
Em tempo: a despeito dos queixumes contra a Receita, o empresário contatado no jantar paulista prometeu ajuda financeira ao comitê de Serra. Condicionou o montante ao desempenho do candidato nas pesquisas.



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