São Paulo, domingo, 17 de março de 2002

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RAIO X

"Bunker" de Lula toma lugar do PT na elaboração de programas

Instituto Cidadania, fundado há 10 anos, prepara projetos setoriais para petista

DA REPORTAGEM LOCAL

Longe das plenárias, das assembléias e das disputas frequentes entre as tendências do PT, é num prédio silencioso, com dois andares e vidro fumê que se escreve grande parte do programa de governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Rua Pouso Alegre, 21, no bairro do Ipiranga, zona sul de São Paulo. Ali funciona, muito discretamente, o Instituto Cidadania, a organização não-governamental fundada e dirigida por Lula há dez anos. Não é por acaso que muitos petistas se referem ao Instituto como um "bunker". Os vidros fumês que lhe ornam a fachada são uma imagem sugestiva para ilustrar a dificuldade de acesso à casa política do pré-candidato petista.
A reportagem da Folha procurou durante uma semana obter informações triviais -sobretudo para um partido que usa a defesa da transparência como ativo político- sobre o funcionamento do Instituto. Apenas na última sexta-feira, depois de sucessivas recusas e dificuldades impostas pela assessoria, o jornal conseguiu conversar com o presidente do IC, Paulo Okamotto.
Descendente direto do Governo Paralelo que Lula montou para organizar a oposição ao governo Fernando Collor (1990-92), o IC, formalmente uma ONG, teve no ano passado um orçamento de R$ 800 mil, proveniente do PT, de um quadro de 250 associados e de patrocinadores de seus projetos.
Entidade sem fins lucrativos, o Instituto prepara, no momento, quase uma dezena de projetos setoriais para serem defendidos pelo pré-candidato em sua quarta campanha presidencial.
Em todos eles, a participação do PT, o partido político, é virtualmente nula. Quem prepara, escreve e divulga as idéias que serão encampadas por Lula é um grupo escolhido a dedo pelo líder do PT.
São pessoas de inteira confiança de Lula, que têm a moderação como traço comum. A defesa da ruptura radical com o modelo vigente, slogan comum entre militantes e caciques do partido, passa longe do prédio do Ipiranga.
O Instituto já finalizou programas para moradia, segurança pública e erradicação da fome, além de um rascunho sobre a área econômica. Vêm a seguir projetos para energia, ciência e tecnologia, geração de emprego, reforma administrativa, política industrial e reforma política.
"Desde 98, o Instituto intensificou os seus trabalhos. Tornou-se mais ativo e produziu mais", diz o professor da FGV Guido Mantega, coordenador da equipe de economistas do IC.
Os objetivos e método concentrado de trabalho da ONG incomodam alguns petistas. A esquerda do partido acusa o Instituto de usurpar funções próprias do partido político. Reclama do que diz ser imposição de um programa à massa de filiados.
"O Instituto Cidadania é a holding pela qual o Lula controla o PT e a CUT", afirma o deputado federal Milton Temer (RJ), estrela da ala radical do PT. "O Instituto, como fórum, pode ter função positiva. Mas não deve ser o motor de arranque do debate", diz.
A confusão entre o Instituto e o PT é frequente. São duas entidades em tese autônomas, mas na prática não totalmente: o partido paga uma "mesada" de R$ 23 mil à ONG de Lula.
Instados a explicar a relação, integrantes da direção petista apressam-se em dizer que os planos preparados pela ONG de Lula, embora feitos sob a coordenação do candidato a presidente e com a participação de alguns dos principais cérebros do partido, não são o programa de governo. Repetem o bordão de que o IC se limita a fornecer subsídios para o PT elaborar a sua proposta.
Versão oficial à parte, restam poucas dúvidas de que a linha mestra do que Lula defenderá tem origem no prédio do Ipiranga, onde fica seu escritório -e onde ele pode ser encontrado com mais facilidade do que na sede do PT.

Intelligentsia
"O trabalho do Instituto é o subsídio principal [ao programa do PT". Na economia e na segurança pública, é o único. É o que Lula pensa, é o trabalho da intelligentsia", reconhece Mantega.
A intelligentsia a que se refere o economista compreende, além dele próprio, figuras como o deputado Aloizio Mercadante (programa de economia), o professor da Unicamp José Graziano (erradicação da fome), o físico Luiz Pinguelli Rosa (energia), o antropólogo Luiz Eduardo Soares (segurança), entre outras.
Cansado das discussões partidárias, para as quais tem cada vez menos paciência, Lula hoje gasta mais tempo em seminários do Instituto do que no dia-a-dia do petismo -tarefa que deixa para o presidente do partido, José Dirceu. Na associação à imagem "leve" do Instituto, busca um contraponto à pecha de radical, sem preparo e sem propostas, raízes de seus altos índices de rejeição.
"O Instituto é um espaço que não fica restrito à atuação de um único partido", diz Okamotto.
Livre da patrulha interna, o cacique petista se permite conversar com pessoas de fora do PT. Do programa econômico, participaram especialistas como Luiz Gonzaga Belluzzo e Luciano Coutinho, ligados historicamente ao PMDB, e o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.
Em um seminário do Instituto contra a fome, Lula debateu com o ex-senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA). "No PT, um debate com ACM seria impensável. Mas no Instituto ele teve a oportunidade", declara Mantega.
Muitas vezes, apesar do cuidado para não melindrar os "excluídos" de dentro partido, ocorre um curto-circuito. Como no ano passado, quando a Folha revelou o teor do esboço do programa econômico em gestação no IC. Cobrado dentro do partido, Dirceu repetiu a teoria de que era apenas um "subsídio". Mas o estrago já estava feito.
"Quando figuras de projeção do partido avalizam um plano como aquele, fica difícil dizer que não é do PT", critica o ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont, da ala "radical" petista.



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