São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2004

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NO PLANALTO

Um caso de estrabismo do Ministério Público

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Num país em que a Justiça, além de cega, às vezes traz a balança desregulada e a espada sem fio, o papel do Ministério Público é estratégico. Procuradores agem como reis em terra de cego. O olho que os distingue, porém, não está imune a inusitados surtos de estrabismo.
Abaixo se relatará um caso em que o olhar da Procuradoria da República foi afetado por um tipo particular de disfunção ótica: o estrabismo convergente. Produz um fenômeno que a medicina chama de diplopia. Em português claro, é a visão dupla, distorcida, de um mesmo objeto.
No caso que nos interessa o objeto é uma investigação nascida em Manaus. Desvendou o maior caso de contrabando já detectado no país. Noticiada aqui em março de 2003, a encrenca envolve fraudes de R$ 200 milhões.
O logro foi descoberto por acaso, graças a uma carta anônima enviada à Receita Federal. Beneficiadas por isenções fiscais, empresas instaladas na Zona Franca deveriam trazer peças do exterior para montar equipamentos em Manaus. Em vez de peças, importavam eletroeletrônicos prontinhos -televisores, máquinas fotográficas digitais, equipamentos de som, o diabo.
Vinham da Ásia, sobretudo de Hong Kong. Aportavam no Brasil com manual em português e falso selo de origem: "Produzido no Pólo Industrial de Manaus". Fiscais da Receita faziam vista grossa em troca de propinas.
Coube à Polícia Federal desbaratar a quadrilha, com o auxílio do Ministério Público e da Receita. Tudo esclarecido, encaminhou-se à Justiça a primeira denúncia. É de fevereiro de 2002. Assina-a o procurador Sérgio Lauria. O texto é minucioso e implacável.
Em 25 laudas datilografadas, Lauria apresentou evidências do cometimento de seis crimes: formação de quadrilha, contrabando, corrupção ativa e passiva, estelionato, falsificação de documentos e lavagem de dinheiro. Foram ao banco dos réus fiscais, funcionários subalternos e executivos de empresa fraudadora.
A Justiça, que é cega, mas não perdeu o olfato, desmembrou o processo em dois. Um deles caminha a toque de caixa. Inclui dois fiscais e três bagrinhos de uma das cinco empresas pilhadas na investigação. O outro anda em ritmo de tartaruga manca. Analisa o comportamento dos executivos da empresa.
O processo dos peixes miúdos já dispõe de sentença. Foi proferida em 21 de março de 2003 pela juíza federal Jaísa Maria Pinto Fraxe. Coisa draconiana. Condenaram-se os réus a penas que vão de 21 anos e dois meses a 35 anos e oito meses de cana. A pena máxima foi imposta a Maristela Santos de Araújo Lopes. Era supervisora da Receita no porto de Manaus.
Os autos que mencionam os nomes dos executivos da empresa seguem inconclusos. Chama-se DM Eletrônica da Amazônia a firma em apuros. Era fornecedora da CCE, gigante nacional do ramo eletrônico. O réu mais notório é Isaac Sverner, presidente da CCE e, à época dos delitos, sócio da DM.
Enquanto rolava o processo, prosseguiram as investigações. Súbito, apreenderam-se novos contêineres. Continham R$ 6 milhões em mercadorias. Também vinham da Ásia.
Em relatório de 2 de maio de 2003, o delegado da PF José Serpa de Santa Maria Júnior disse tratar-se da "mesma especialidade de delitos". Ou seja, "a importação fraudulenta de produtos eletrônicos acabados como sendo partes e peças, na tentativa de obter indevidamente os incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus".
A firma responsável pela fraude era "novamente a DM Eletrônica da Amazônia". Procedeu-se à indiciação dos sócios. Entre eles, de novo, Isaac Sverner. De posse dos documentos que detalhavam a reincidência, o mesmo procurador Sérgio Lauria formulou nova denúncia. Deu-se o estrabismo.
Diferentemente da primeira (25 laudas minuciosas e implacáveis), a segunda denúncia de Lauria foi vazada em cinco folhas de papel. Mencionam-se, além dos executivos da DM, os responsáveis pelo transporte da carga. São acusados de contrabando. Nenhuma referência à formação de quadrilha. Nada sobre lavagem de dinheiro. Nem sinal de estelionato.
Os advogados da DM receberam a segunda denúncia como um inesperado quindim. A peça foi levada ao conhecimento de desembargadores do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Ali tramitam recursos em que a DM pleiteia, entre outras coisas, o trancamento do processo amazônico.
Familiarizados com o caso, juízes do TRF ficaram de cabeça virada. Um deles, em contato com o repórter, raciocinou: ou a primeira denúncia carregou nas tintas ou a segunda é inepta. Em qualquer hipótese, não fica bem o Ministério Público.
O repórter tenta há três semanas contatar Sérgio Lauria. O procurador já não está em Manaus. Foi transferido para Porto Alegre. Ali se informa que teria sido removido para São Paulo. Na capital paulista, diz-se que ainda não tomou posse.
Beneficiados por recursos judiciais, os bagres condenados ganharam as ruas. Defendem-se em liberdade. Só um funcionário da Receita continua preso. Não recorreu. Não há data prevista para o julgamento dos empresários.
Galpões abarrotados, a Receita combinou com o Ministério da Educação o repasse para escolas públicas de R$ 10 milhões em equipamentos apreendidos. Tudo organizado, a DM obteve liminar judicial brecando o presente. O caso, como se vê, promete.


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