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NO PLANALTO
Um caso de estrabismo do Ministério Público
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Num país em que a Justiça,
além de cega, às vezes traz a
balança desregulada e a espada
sem fio, o papel do Ministério Público é estratégico. Procuradores
agem como reis em terra de cego.
O olho que os distingue, porém,
não está imune a inusitados surtos de estrabismo.
Abaixo se relatará um caso em
que o olhar da Procuradoria da
República foi afetado por um tipo
particular de disfunção ótica: o
estrabismo convergente. Produz
um fenômeno que a medicina
chama de diplopia. Em português
claro, é a visão dupla, distorcida,
de um mesmo objeto.
No caso que nos interessa o objeto é uma investigação nascida
em Manaus. Desvendou o maior
caso de contrabando já detectado
no país. Noticiada aqui em março
de 2003, a encrenca envolve fraudes de R$ 200 milhões.
O logro foi descoberto por acaso,
graças a uma carta anônima enviada à Receita Federal. Beneficiadas por isenções fiscais, empresas instaladas na Zona Franca
deveriam trazer peças do exterior
para montar equipamentos em
Manaus. Em vez de peças, importavam eletroeletrônicos prontinhos -televisores, máquinas fotográficas digitais, equipamentos
de som, o diabo.
Vinham da Ásia, sobretudo de
Hong Kong. Aportavam no Brasil
com manual em português e falso
selo de origem: "Produzido no Pólo Industrial de Manaus". Fiscais
da Receita faziam vista grossa em
troca de propinas.
Coube à Polícia Federal desbaratar a quadrilha, com o auxílio
do Ministério Público e da Receita. Tudo esclarecido, encaminhou-se à Justiça a primeira denúncia. É de fevereiro de 2002.
Assina-a o procurador Sérgio
Lauria. O texto é minucioso e implacável.
Em 25 laudas datilografadas,
Lauria apresentou evidências do
cometimento de seis crimes: formação de quadrilha, contrabando, corrupção ativa e passiva, estelionato, falsificação de documentos e lavagem de dinheiro.
Foram ao banco dos réus fiscais,
funcionários subalternos e executivos de empresa fraudadora.
A Justiça, que é cega, mas não
perdeu o olfato, desmembrou o
processo em dois. Um deles caminha a toque de caixa. Inclui dois
fiscais e três bagrinhos de uma
das cinco empresas pilhadas na
investigação. O outro anda em
ritmo de tartaruga manca. Analisa o comportamento dos executivos da empresa.
O processo dos peixes miúdos já
dispõe de sentença. Foi proferida
em 21 de março de 2003 pela juíza
federal Jaísa Maria Pinto Fraxe.
Coisa draconiana. Condenaram-se os réus a penas que vão de 21
anos e dois meses a 35 anos e oito
meses de cana. A pena máxima
foi imposta a Maristela Santos de
Araújo Lopes. Era supervisora da
Receita no porto de Manaus.
Os autos que mencionam os nomes dos executivos da empresa
seguem inconclusos. Chama-se
DM Eletrônica da Amazônia a
firma em apuros. Era fornecedora
da CCE, gigante nacional do ramo eletrônico. O réu mais notório
é Isaac Sverner, presidente da
CCE e, à época dos delitos, sócio
da DM.
Enquanto rolava o processo,
prosseguiram as investigações.
Súbito, apreenderam-se novos
contêineres. Continham R$ 6 milhões em mercadorias. Também
vinham da Ásia.
Em relatório de 2 de maio de
2003, o delegado da PF José Serpa
de Santa Maria Júnior disse tratar-se da "mesma especialidade
de delitos". Ou seja, "a importação fraudulenta de produtos eletrônicos acabados como sendo
partes e peças, na tentativa de obter indevidamente os incentivos
fiscais da Zona Franca de Manaus".
A firma responsável pela fraude
era "novamente a DM Eletrônica
da Amazônia". Procedeu-se à indiciação dos sócios. Entre eles, de
novo, Isaac Sverner. De posse dos
documentos que detalhavam a
reincidência, o mesmo procurador Sérgio Lauria formulou nova
denúncia. Deu-se o estrabismo.
Diferentemente da primeira (25
laudas minuciosas e implacáveis), a segunda denúncia de Lauria foi vazada em cinco folhas de
papel. Mencionam-se, além dos
executivos da DM, os responsáveis pelo transporte da carga. São
acusados de contrabando. Nenhuma referência à formação de
quadrilha. Nada sobre lavagem
de dinheiro. Nem sinal de estelionato.
Os advogados da DM receberam a segunda denúncia como
um inesperado quindim. A peça
foi levada ao conhecimento de desembargadores do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em
Brasília. Ali tramitam recursos
em que a DM pleiteia, entre outras coisas, o trancamento do processo amazônico.
Familiarizados com o caso, juízes do TRF ficaram de cabeça virada. Um deles, em contato com o
repórter, raciocinou: ou a primeira denúncia carregou nas tintas
ou a segunda é inepta. Em qualquer hipótese, não fica bem o Ministério Público.
O repórter tenta há três semanas contatar Sérgio Lauria. O
procurador já não está em Manaus. Foi transferido para Porto
Alegre. Ali se informa que teria sido removido para São Paulo. Na
capital paulista, diz-se que ainda
não tomou posse.
Beneficiados por recursos judiciais, os bagres condenados ganharam as ruas. Defendem-se em
liberdade. Só um funcionário da
Receita continua preso. Não recorreu. Não há data prevista para
o julgamento dos empresários.
Galpões abarrotados, a Receita
combinou com o Ministério da
Educação o repasse para escolas
públicas de R$ 10 milhões em
equipamentos apreendidos. Tudo
organizado, a DM obteve liminar
judicial brecando o presente. O
caso, como se vê, promete.
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