São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2009

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JANIO DE FREITAS

De um para o outro


Bush fez mais para merecer o impeachment do que foi exposto; Obama, menos que o necessário para justificar expectativas

O ALÍVIO SIMBOLIZADO no "ex" que, em poucas horas mais, será pespegado ao título presidencial de Bush, confunde-se com as eufóricas esperanças depositadas em Barack Obama. A mistura não é justa em relação a um nem a outro. Bush fez muito mais, para merecer o impeachment e dois bancos de réu, do que foi exposto como deveria; Obama fez e disse muito menos do que o necessário para justificar, mais do que sua pele, as expectativas que suscita com força de certezas.
O que Bush fez do patrimônio de direitos civis dos Estados Unidos, a pretexto de combate ao terrorismo, figura entre as características dos regimes totalitários. Prisões, violação de correspondência, escutas telefônicas e ambientais, buscas e apreensões domiciliares, encarceramentos sem processos -tudo isso deixou de precisar de ordem judicial e mesmo de indícios lógicos, compondo um rol de liberdades autoritárias próprio dos regimes policiais.
Bush e seu círculo foram a infantaria nesse ataque vitorioso à democracia nos Estados Unidos, mas não chegariam a tanto sem contar com a sustentação de uma retaguarda poderosa. Os jornais, a TV, o Judiciário e o Congresso proporcionaram a sustentação. Com o recente reconhecimento da Corte Suprema de que prisões sem processo por anos e anos, mesmo que por alegada suspeita de ligações com terrorismo, são violações à Constituição, abre-se enfim o reconhecimento do excesso de conivência do Judiciário com os excessos do governo. Hoje a imprensa norte-americana reconhece, embora com a conveniente discrição, que fugiu às suas funções, em parte por concordância, em parte por acovardamento ante a avalanche de pressões em nome do antiterrorismo.
O silêncio complacente estendeu-se aos demais países. Os milhares de brasileiros que viajam anualmente aos Estados Unidos, para falarmos só daqui de casa, nunca souberam de muitos dos problemas a que es- tão sujeitos. Não sabem, por exemplo, que levar seu computador é arriscar perdê-lo já na entrada, sem garantia de restituição. Daí à pasta de dentes, todos somos terroristas em potencial.
O terrorismo pretextou, com ares de zelo preventivo, medidas de autoritarismo que feriram sem limite os direitos civis e, portanto, a Constituição dos Estados Unidos. Apenas a mínima parcela desses atos governamentais bastaria para o pedido de impeachment. Ou seria possível relegar tudo isso, e ficar tão-só com a criação de uma guerra justificada por falsidades afirmadas ao Congresso e ao povo. Caso mais do que claro de impeachment, mesmo sem se apurarem os benefícios obtidos da guerra por empresas e gente de negócio ligados ao círculo de Bush.
E as ideias de Obama, quais são, mesmo? A propósito de qualquer coisa um tanto relevante, não importa qual. O que se sabe é muito menos até do que linhas gerais. E, ainda por cima, com várias contradições. Aí pode estar a cautela de quem articula forças, e não deve precipitar confronto com parte delas. Como foi na campanha eleitoral, discursos bem construídos e vazios, limitados às obviedades do oposicionismo fácil a Bush e aos republicanos. Pode estar algo muito diferente, no entanto.
Uma verdade universal e imutável da política: só se conhecem os governantes quando governam. Nesse sentido, Kennedy é uma lembrança talvez útil neste momento. Não por sua tragédia, já muito evocada a propósito de um presidente negro. Mas pela grande semelhança entre as expectativas exuberantes que cercaram a figura e o então futuro governo de Kennedy e, agora, cercam Obama. Kennedy foi o presidente que deu a partida à terrível Guerra do Vietnã, que autorizou a invasão de Cuba e abandonou os invasores cercados para não se comprometer; que autorizou os preparativos para a derrubada de João Goulart, que lançou várias "operações" na África e na América Latina, e por aí foi.
Obama, sem dúvida, é merecedor de muito mais esperanças do que Kennedy. Mas ainda vai dizer, a partir desta semana, a que veio, de fato.


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