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ELIO GASPARI
Os dois foros privilegiados do Zé
Em novembro de 1968, o
estudante José Dirceu de
Oliveira e Silva tinha o foro privilegiado do andar de baixo.
Preso desde junho, durante o
desmanche do congresso clandestino da UNE, bateu à porta
do Superior Tribunal Militar,
pedindo que o soltassem.
A ditadura transferira às cortes militares o julgamento dos
crimes políticos. Nada feito. Ele
só sairia da cadeia um ano depois, no lote de presos trocados
depois do seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick. Dirceu penou o foro privilegiado dos Zé Ninguém. A história, essa trapaceira, fez com
que, 37 anos depois, denunciado
pelo procurador-geral da República como chefe da quadrilha
do mensalão, ele esteja numa
caravana que usufrui o benefício do foro privilegiado do andar de cima. Como ex-ministro,
responde por seus atos no Supremo Tribunal Federal.
Na conta do ministro Joaquim
Barbosa, relator do processo, a
tramitação do caso da quadrilha-companheira levará em torno de dois anos. É ele quem diz:
"Sou totalmente a favor do fim
do foro privilegiado. É uma racionalização da impunidade".
Dificilmente será ouvido, porque essa bizarria da criação tucana destina-se exatamente a
racionalizar a impunidade.
Segundo o ministro, "o problema é cultural, faz parte do jeitinho brasileiro". Por mais que ele
esteja certo ao defender o fim do
privilégio, não é justo atribuir
mamatas do andar de cima à
cultura de um povo. A idéia de
que estudantes devessem ser
castigados pelas cortes militares
e que ex-ministros devam ser
julgados pelo Supremo não faz
parte da cultura do operário
que pega o ônibus em São Januário. É coisa antiga, mas beneficia (ou pune) setores perfeitamente demarcados da sociedade. A racionalização da impunidade do século 21 fica a dever às estatísticas do 16. Na Colônia, os fidalgos tinham foro
privilegiado, mas no último
quartel do Quinhentos, três ouvidores-gerais foram remetidos,
a ferros, aos tribunais de Lisboa.
(À época, o Brasil tinha menos
de 100 mil habitantes.)
As pizzas do plenário da Câmara, o absenteísmo teatral do
presidente da República e delongas processuais como a que o
ministro Barbosa denunciou
trazem um mau presságio. A
quadrilha-companheira e seus
aliados estão remontando a armadilha do "folclore da corrupção". O economista sueco Gunnar Myrdal (Nobel de 1974) cunhou essa expressão para designar a mistura de conformismo e
desencanto que encharca a sociedade depois que retumbantes
cruzadas moralistas acabam
em nada. O professor indicava
que, nesses casos, ganhava a
roubalheira.
O Brasil aturou três governantes que se autoproclamaram
campeões da moralidade. O primeiro, Jânio Quadros, teve uma
vassoura como símbolo. Tornou-se caso único de político
brasileiro cuja conta na Suíça
foi objeto de processo judicial,
movido pela filha. O segundo,
Fernando Collor, viu-se impedido pelo Congresso. Já "nosso
guia" sustenta que de nada soube e ninguém haverá de lhe dar
aulas de ética. Tomando-se o
discurso petista da corrupção
sistêmica, comprova-se o acerto
da observação de Myrdal. As
três cruzadas moralistas não desestimularam as roubalheiras.
Pelo contrário, deram aos petistas federais a presunção de que
o Palácio do Planalto era uma
recriação do falecido Cineac
Trianon: "O espetáculo começa
quando você chega".
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