São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 2006

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ELIO GASPARI

Os dois foros privilegiados do Zé

Em novembro de 1968, o estudante José Dirceu de Oliveira e Silva tinha o foro privilegiado do andar de baixo. Preso desde junho, durante o desmanche do congresso clandestino da UNE, bateu à porta do Superior Tribunal Militar, pedindo que o soltassem.
A ditadura transferira às cortes militares o julgamento dos crimes políticos. Nada feito. Ele só sairia da cadeia um ano depois, no lote de presos trocados depois do seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick. Dirceu penou o foro privilegiado dos Zé Ninguém. A história, essa trapaceira, fez com que, 37 anos depois, denunciado pelo procurador-geral da República como chefe da quadrilha do mensalão, ele esteja numa caravana que usufrui o benefício do foro privilegiado do andar de cima. Como ex-ministro, responde por seus atos no Supremo Tribunal Federal.
Na conta do ministro Joaquim Barbosa, relator do processo, a tramitação do caso da quadrilha-companheira levará em torno de dois anos. É ele quem diz: "Sou totalmente a favor do fim do foro privilegiado. É uma racionalização da impunidade". Dificilmente será ouvido, porque essa bizarria da criação tucana destina-se exatamente a racionalizar a impunidade.
Segundo o ministro, "o problema é cultural, faz parte do jeitinho brasileiro". Por mais que ele esteja certo ao defender o fim do privilégio, não é justo atribuir mamatas do andar de cima à cultura de um povo. A idéia de que estudantes devessem ser castigados pelas cortes militares e que ex-ministros devam ser julgados pelo Supremo não faz parte da cultura do operário que pega o ônibus em São Januário. É coisa antiga, mas beneficia (ou pune) setores perfeitamente demarcados da sociedade. A racionalização da impunidade do século 21 fica a dever às estatísticas do 16. Na Colônia, os fidalgos tinham foro privilegiado, mas no último quartel do Quinhentos, três ouvidores-gerais foram remetidos, a ferros, aos tribunais de Lisboa. (À época, o Brasil tinha menos de 100 mil habitantes.)
As pizzas do plenário da Câmara, o absenteísmo teatral do presidente da República e delongas processuais como a que o ministro Barbosa denunciou trazem um mau presságio. A quadrilha-companheira e seus aliados estão remontando a armadilha do "folclore da corrupção". O economista sueco Gunnar Myrdal (Nobel de 1974) cunhou essa expressão para designar a mistura de conformismo e desencanto que encharca a sociedade depois que retumbantes cruzadas moralistas acabam em nada. O professor indicava que, nesses casos, ganhava a roubalheira.
O Brasil aturou três governantes que se autoproclamaram campeões da moralidade. O primeiro, Jânio Quadros, teve uma vassoura como símbolo. Tornou-se caso único de político brasileiro cuja conta na Suíça foi objeto de processo judicial, movido pela filha. O segundo, Fernando Collor, viu-se impedido pelo Congresso. Já "nosso guia" sustenta que de nada soube e ninguém haverá de lhe dar aulas de ética. Tomando-se o discurso petista da corrupção sistêmica, comprova-se o acerto da observação de Myrdal. As três cruzadas moralistas não desestimularam as roubalheiras. Pelo contrário, deram aos petistas federais a presunção de que o Palácio do Planalto era uma recriação do falecido Cineac Trianon: "O espetáculo começa quando você chega".


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