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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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DIPLOMACIA INADIMPLENTE

Ministério das Relações Exteriores pede R$ 800 milhões, mas só leva R$ 196 milhões do governo

Penúria constrange imagem do Itamaraty

Antônio Milena -12.jul.03/Agência Brasil
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o governador Cássio Cunha Lima (Paraíba) na residência oficial da embaixada em Londres


ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Itamaraty pediu R$ 800 milhões para botar a casa em ordem, mas o Palácio do Planalto só concedeu R$ 196 milhões de verbas suplementares para pagar dívidas que deixam o Brasil numa situação constrangedora mundo afora -com os organismos internacionais, por exemplo.
O Orçamento da pasta para 2003 foi de R$ 549 milhões, mas, desse total, R$ 65 milhões foram "contingenciados", ou seja, não puderam ser realmente usados. Só com organismos como a ONU (Organização das Nações Unidas), a dívida já bate no equivalente a R$ 560 milhões.
Para a própria ONU, o Brasil deve algo em torno de R$ 300 milhões, mas já decidiu pagar apenas o suficiente para não passar o vexame de perder o direito a voto: R$ 60 milhões. O resto fica para depois, um dia, quem sabe.
Para a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), o país precisa pagar um mínimo de R$ 7,5 milhões. E, para a OIT (Organização Internacional do Trabalho), mais R$ 10,5 milhões. Senão, lá se vai o direito a voto.
Os recursos suplementares -que dependem ainda de aprovação do Congresso- também servirão de socorro para quitar as dívidas e o devido até o final do ano em três áreas: manutenção de postos próprios, caso de Roma, Tóquio e Paris; aluguel de postos, como o consulado, o escritório na ONU e o escritório financeiro em Nova York; e contratos terceirizados de vigilância, telefone, água e luz, por exemplo.
Conforme a Folha apurou, as dívidas desses contratos já chegam a R$ 15 milhões, R$ 200 mil só com à Embratel (telefone). São quatro meses de atraso.
São dívidas altas, mas quase banais numa casa em que tudo é muito caro: os telefonemas, as mudanças, as diárias, os aluguéis (de embaixadas, consulados e moradias) são regidos por parâmetros internacionais -e pagos em dólar. Além disso, diplomatas não devem morar em prédios caindo aos pedaços, nem convém economizar no bacalhau ou no filé das recepções da chancelaria.

Sem auxílio-moradia
Assim, a questão de falta de recursos desce também à vida pessoal dos diplomatas e dos funcionários que servem no exterior e que não têm recebido auxílio-moradia nem reembolso pela mudança da mobília e, em caso de alguns "locais" (staff contratado fora), os atrasos têm sido rotina.
Nos EUA, a lei local determina pagamento de salário até o dia 26 do mês, mas o Itamaraty está pagando no dia 9 ou 10 do mês seguinte. O risco é uma avalanche de ações na Justiça, o que pode custar uma fortuna aos cofres públicos. Issoa se somaria a uma dívida trabalhista já existente de R$ 40 milhões, referente ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) para contratados locais em países que não têm sistema de Previdência Social, mas são incluídos no sistema brasileiro. Não há perspectiva de quitação.
A estimativa extra-oficial -as informações oficiais foram bloqueadas, para "não criar atritos com o Planalto"- é de que, só com o atraso de quatro meses no auxílio-moradia, o Itamaraty esteja devendo a seus quadros cerca de R$ 400 milhões. As contas para essa vantagem são complicadíssimas. Grosso modo, levam-se em conta a função (diplomata, oficial de chancelaria e assistente de chancelaria), a hierarquia, o posto e o número de filhos.
Em média, o auxílio cobre de 60% a 80% do aluguel, transformando-se num salário indireto. Um secretário (iniciante da carreira diplomática) com dois dependentes teria direito, por exemplo, a até R$ 1.200 para aluguel no Canadá, correspondendo a 65% do teto, ou "aluguel ideal". No Paraguai, cairia para R$ 900.
As reclamações de falta de dinheiro acumulam-se em forma de mensagens de socorro enviadas por embaixadores à sede do Itamaraty, em Brasília, caracterizando quase uma articulação coletiva de combate à pindaíba, ou um recado não apenas ao chanceler Celso Amorim, mas à área econômica e ao chefe de todos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Uma dessas mensagens, revelada há pouco pelo jornal "Correio Braziliense", impressiona: o embaixador em Assunção, Luiz Augusto de Castro Neves, reclamou que as contas de telefone e de aluguel de veículos para a visita de Lula ao Paraguai não haviam sido pagas. A visita foi em agosto. A reclamação, em outubro.
Segundo a mensagem, em tom de desespero, algumas empresas haviam informado que as faturas estavam "na eminência de serem cobradas judicialmente". Total da dívida "pendurada": US$ 5.000.

Problemas no Brasil
Além dos relatos dos que servem no exterior, há ainda dos que têm cargos no Brasil mesmo. Um diplomata contou que um colega não consegue ser indenizado pelo transporte da mobília. E ele mudou há quatro meses. Outro reclamava de não ter recebido até a última sexta-feira as diárias de uma visita presidencial ao exterior. A tabela varia de acordo com o custo de vida do local e, neste caso, a diária era de US$ 200.
O Itamaraty tem 1.067 diplomatas: 156 embaixadores, 152 ministros, 223 conselheiros e 536 secretários de três níveis. E tem cerca de 1.400 funcionários de chancelaria, entre oficiais e assistentes. Ou vivem no exterior, ou são sediados no Brasil e viajam muito.
Lula viajou mais ao exterior do que seu antecessor no primeiro ano de governo. Isso implica escalões precursores, instalações técnicas, logística de transportes, hotéis e diárias. Se a viagem ao Paraguai está atrasada, supõe-se que muitas outras poderão também estar.
O efeito do calote não é pequeno. Um embaixador relatou que, ao ser nomeado para um cargo nos EUA no início dos anos 90, recebeu orientação explícita do então presidente Fernando Collor (90-93) para visitar instituições financeiras falando sobre a solidez da macroeconomia e do cumprimento de contratos. Num dos encontros, o interlocutor reagiu: "E o aluguel do consulado?" Por azar, o consulado brasileiro ficava justamente num prédio do grupo do tal interlocutor. E estava atrasado havia meses.


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