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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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CHAVE DO COFRE

Personagem administrou R$ 33 milhões na campanha de Lula e trabalha na reestruturação do partido

Tesoureiro turbina campanha do PT de 2004

RUBENS VALENTE
JULIA DUAILIBI
DA REPORTAGEM LOCAL

Dono da chave do cofre da campanha que elegeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o menos conhecido personagem da cúpula petista, Delúbio Soares de Castro, 48, já saiu a campo para colocar em prática um ambicioso projeto de reestruturação material e política do PT para as eleições municipais de 2004.
A missão do ex-tesoureiro de Lula e atual coordenador financeiro do PT passa por questões práticas, como a criação de uma rede de 7.000 computadores pessoais, orçados em cerca de R$ 20 milhões, pela qual os diretórios estaduais e municipais receberão as orientações do comando partidário para 2004.
E avança para tarefas políticas, integrado ao desafio que o partido terá pela frente para formar candidaturas municipais que não causem abalos sérios na base aliada no Congresso Nacional.
Ao lado do secretário de Organização do PT, Sílvio Pereira, Delúbio Soares está por trás da campanha de filiação em massa da legenda, que pretende ultrapassar 1 milhão de filiados. Com isso, o partido quer aumentar sua receita atual de R$ 43 milhões anuais.
Delúbio assumiu a nova tarefa com a mesma característica que o fez cruzar toda a disputa presidencial sem protagonizar um único episódio negativo para o PT: a discrição (em toda a campanha, há registro de uma entrevista coletiva de Delúbio, concedida ao lado de outros petistas).
Numa campanha ultranoticiada, é uma façanha o tesoureiro do partido vencedor da vaga mais cobiçada da República, que administrou um caixa oficial de R$ 33 milhões, ter passado tão despercebido. E assim ficou: ele é um dos dois únicos importantes nomes da campanha de Lula que foi mantido fora do governo -o outro "sem-cargo" é Silvio Pereira.
O goiano de Buriti Alegre (a 200 km de Goiânia), quase na divisa com Minas Gerais, reage com precaução quando é confrontado com perguntas mais delicadas. Teve atrito sério com algum empresário durante a arrecadação de recursos? Alguém o procura para fazer pedidos ao governo federal? Chegou a ser sondado para ocupar um cargo no governo?
Acompanhadas de um sorriso, as respostas de Delúbio sobre temas assim são quase sempre as mesmas: "Sobre isso não quero falar" ou "não posso contar todas as fontes". Delúbio parece não se esforçar para convencer o interlocutor das razões das suas reservas. Ele apenas meneia a cabeça e muda de assunto. O não-confronto é parte de seu estilo.
Em compensação, deixa escapar frases diretas, como: "Banqueiros são muquiranas". Sorri e fecha o punho para mostrar a dificuldade que tinha com o setor durante a campanha presidencial. Ou então: "Doação grande é acima de R$ 100 mil".
Os banqueiros "sovinas" injetaram recursos na campanha de Lula como nunca -foram R$ 4,9 milhões do setor financeiro. A liderança nas pesquisas, disse o ex-tesoureiro, facilitou o recolhimento de recursos. Nada comparável com as campanhas anteriores. Na de 1998, segundo ele, houve uma "violenta pressão norte-americana" contra a candidatura Lula. As matrizes das empresas norte-americanas teriam orientado as filiais no Brasil a não fazer doações para o petista. "Senti na pele", disse Delúbio. Dessa vez, os americanos não teriam "nem ajudado nem atrapalhado".

Pré-condição
Em determinado momento da campanha de 2002, os principais executivos das indústrias do fumo (lideradas pelas empresas Souza Cruz e Phillip Morris) receberam Delúbio em reunião e quiseram saber o que Lula "poderia oferecer" ao setor, caso vencesse a eleição. O tesoureiro afirmou ter sido sincero com os empresários. Disse que ressaltou três pontos, o combate à pirataria dos cigarros, o "arrocho" -o termo, diz ele, foi esse mesmo- dos impostos e a proteção à saúde do consumidor.
O discurso foi bem compreendido pelos empresários. O setor não doou um único centavo de real para a campanha de Lula.
Alguns relacionamentos entre os empresários e o tesoureiro se prolongam além das campanhas. E se mostraram decisivos para um e outro lado nesses primeiros meses de governo Lula.
O usineiro José Pessoa de Queiroz Bisneto, 43, é um dos três amigos empresários mencionados pelo tesoureiro a pedido da Folha (os outros são Horacio Lafer Piva, presidente da Fiesp, e Armando Monteiro, presidente da Confederação Nacional da Indústria).
José Pessoa confirma a amizade com Delúbio de "mais de dez anos". As nove usinas de álcool do grupo J. Pessoa, considerado o segundo maior do país, giram R$ 500 milhões por ano e empregam 11 mil pessoas em cinco Estados.
Na primeira crise que atingiu o setor sucroalcooleiro no governo Lula, José Pessoa -que também é amigo do governador do Mato Grosso do Sul, Zeca do PT- procurou o ex-tesoureiro do presidente e o próprio Lula.
O governo se mobilizou em torno do assunto. Ministros foram convocados pelo presidente para achar uma saída. O resultado foi um acordo pelo qual os produtores de álcool se comprometeram a antecipar o início da safra em um mês e a segurar os preços, enquanto o governo incentivou as montadoras de veículos a investir na fabricação de carros que podem ser abastecidos tanto com gasolina quanto com álcool.
A estratégia afastou a crise e rendeu lucros para os empresários, que estimam que as usinas brasileiras deverão produzir neste ano 12,5 bilhões de litros de álcool, contra 11 bilhões em 2002.
"O setor está encantado com o Lula", disse José Pessoa. Ele contou ter conhecido o presidente, Delúbio e outros atuais ministros petistas quando passou a incentivar, entre os usineiros, a adoção de práticas contrárias à exploração de trabalho escravo e infantil.
De Delúbio, o empresário destaca duas características: "Humildade e lealdade". "O poder não lhe subiu à cabeça. E é muito leal ao Lula e ao José Dirceu [Casa Civil]." Curiosamente, José Pessoa disse não ter feito nenhuma doação em dinheiro a Lula, mas, sim, "trabalhado para quebrar os preconceitos dos empresários com o PT e vice-versa".

Software
Mesmo empresários que não tiveram maior contato com o PT ao longo dos anos já perceberam que Delúbio pode ser um importante elo de comunicação com o governo. A Assespro (Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação, Software e Internet), que reúne 1.200 empresas de informática, decidiu, no final do ano passado, criar um "conselho consultivo", elegendo 32 políticos e funcionários públicos. Nesse grupo, há apenas um representante da burocracia de um partido político: Delúbio.
Em seu site, a associação diz que foi criada há 25 anos com o objetivo de "defender a sobrevivência das empresas brasileiras de software, garantindo-lhes reserva de mercado e preferências em licitações públicas". A Assespro explica o que tem feito para "ampliar o mercado interno", levando em conta "o poder de compra do Estado": "Iniciado um trabalho de divulgação mais amplo do software brasileiro junto a órgãos do governo e a estatais".
Há no governo Lula um intenso debate sobre os rumos da política estatal para a área de informática, um negócio de R$ 2 bilhões anuais. Parte expressiva dos petistas defende o uso do software livre e de programas desenvolvidos por brasileiros-em contraposição a interesses das gigantes multinacionais, como a Microsoft.
É nesse contexto que se encaixa a ofensiva diplomática da Assespro. O presidente da entidade, Ernesto Haberkorn, conta que a escolha dos "conselheiros consultivos" é parte da estratégia de divulgação do software brasileiro.
Ele conhece Delúbio de nome, mas não sabe exatamente quem, dos empresários associados, achou por bem incluí-lo entre os conselheiros da entidade.
Outros conselheiros ouvidos pela Folha explicaram tratar-se de um título honorífico, sem remuneração ou obrigações. Em uma cerimônia, no final do ano, cada um ganhou um diploma de conselheiro. De lá para cá, só receberam informativos da entidade.


Ex-tesoureiro de Lula tem a missão de construir uma rede de computadores para a campanha municipal de 2004


"Nunca mais me procuraram. É mais um serviço de divulgação deles", contou o senador e conselheiro da Assespro Eduardo Azeredo (PSDB-MG).
Delúbio não compareceu ao evento de distribuição dos diplomas e disse que nunca agendou nenhuma reunião com integrantes do governo a pedido da Assespro. O coordenador financeiro do PT demonstra entusiasmo ao falar sobre informática. "A nossa obsessão é ter o partido informatizado em todo lugar." Talvez isso explique a homenagem feita pela Assespro, imagina Delúbio.
Indagado sobre a frequência com que hoje conversa com Lula, responde: "Evito ir ao Palácio". Mas acrescenta: "Temos acesso a todos os ministros para tratar de questões do PT".

Sindicalismo
O ex-tesoureiro é também relacionado com a cúpula da administração municipal de São Paulo. Sua mulher, a psicóloga Mônica Valente, 43, foi chefe de gabinete da prefeita Marta Suplicy (PT) entre 2001 e 2002 e hoje é secretária municipal de Gestão Pública -tem um dos menores orçamentos da prefeitura, R$ 14 milhões anuais, mas gerencia toda a folha de pagamento do município, de R$ 3,8 bilhões.
"Eu e Delúbio somos pessoas jurídicas diferentes", brinca a secretária, alegando que o casal não discute assuntos partidários ou funcionais. "Nem sei quanto ele ganha", diz Mônica, referindo-se ao salário de Delúbio no PT (cerca de R$ 5 mil mensais).
O interesse do petista pela informática tem a ver com sua formação educacional. Delúbio é bacharel em matemática na Universidade Católica de Goiás e tem mestrado incompleto pela USP. Seus pais são analfabetos, e, quando fala sobre isso, ele se emociona.
Cresceu aprendendo que certos lugares da sala de cinema eram "reservados" aos filhos da elite, um pequeno apartheid social da Buriti Alegre dos anos 60.
Delúbio teve uma infância pobre, na lavoura. Não abandonou pelo menos dois hábitos dessa época, dormir pouco e acordar cedo. "O que eu me lembro é que ele trabalhava muito pelo partido, não tinha feriado nem final de semana", conta a deputada federal Neyde Aparecida (PT), 51, amiga de Delúbio. O grupo deles fundou a Central Única dos Trabalhadores goiana. No anos 80, Delúbio seguiu para a direção nacional da CUT e, de lá, para o PT.
Chegou à cúpula do partido em 1995, na gestão de José Dirceu.

Aniversário
Delúbio costuma dormir à 1h e acordar às 5h30. Ele não parece se incomodar com a fama de "matuto". Indagado sobre os livros que mais marcaram sua formação, dá uma resposta irônica: "Olha, o que mais me impressionou foi a dificuldade da vida mesmo".
Nos últimos tempos, leu uma biografia da rainha egípcia Cleópatra e ganhou a autobiografia do escritor colombiano Gabriel García Márquez, do qual se declara fã. Não cita nenhuma referência esquerdista (admira Mahatma Gandhi). Em contrapartida, ficou uns 20 anos sem tomar Coca-Cola, em protesto "contra o imperialismo ianque". Hoje gosta de passear em Nova York e na Europa. Aprecia charutos caros, mas zomba da qualidade do relógio de segunda linha que usa ("vive parado").
Delúbio viaja tanto que diz não se lembrar da última vez em que passou uma semana inteira em São Paulo. Começou a passada em São Paulo, foi a Belo Horizonte (MG), passou por Brasília e voltou a São Paulo na quinta-feira, dia do seu aniversário. Na quarta, a filial brasiliense do restaurante "Porcão" fechou um salão para comemorar a data. Segundo a casa, que cobra em média R$ 43 por refeição, cinco ministros de Estado apareceram, entre os quais José Dirceu (Casa Civil) e Benedita da Silva (Assistência Social).
Por circular entre tantos políticos e conhecer a máquina do partido como poucos, era quase natural que Delúbio fosse tentado a disputar um mandato parlamentar. E isso ocorreu. Ele revela que, em 2002, queria se lançar a uma vaga de deputado federal por Goiás -idéia abandonada após o convite para que integrasse a campanha de Lula. O ex-tesoureiro não dá sinais de que abandonou o projeto. Talvez só o tenha adiado para 2006.


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