São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

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JANIO DE FREITAS

Os papéis do horror

Há 30 anos, ou desde que os civis recuperaram o direito de governar o Brasil, a abertura dos arquivos da ditadura é reclamada, mas nunca se questionou devidamente a motivação dos militares para seu tamanho horror a tal medida. Deu-se como estabelecido, meio por alto, que a tortura em quartéis e o encobrimento dos seus autores aciona o espírito de corporação dos militares.
A breve explicação é inegável, mas não reflete toda a gravidade do que está por trás da atitude dos militares. A tortura praticada no Exército, Marinha e Aeronáutica começou a ser narrada por suas vítimas ainda na ditadura, quando de interrogatórios em julgamentos. Cedo ficou documentada, portanto, em partes inseparáveis de processos depois recolhidos aos depósitos judiciais. Apesar de menos ampla do que deveria, a narrativa pública da tortura, pela imprensa outra vez liberalizada, deu conhecimento do que se passara a todo o país. A omissão acovardada dos poderes públicos foi suprida pelo trabalho valiosíssimo do "Tortura Nunca Mais" e outras entidades, que levantaram e publicaram os relatos das vítimas e a identificação dos torturadores.
Com isso, a resistência dos militares à abertura de arquivos pouco acrescenta à proteção dos torturadores e de seus comandos, não menos comprometidos. Mas a tortura não é tudo o que pode surgir de arquivos que, para começar os problemas dos militares, nem eles sabem o que contêm. Os milhares de documentos da repressão agora encontrados em Salvador e Porto Alegre são apenas dois exemplos do que há por aí. O que nos leva a aplaudir a imprevidência e a desorganização dos militares.
No problema dos presos desaparecidos há casos pavorosos. Com testemunhas, há anos ouvi o coronel Heitor Linhares contar, indignado, que soubera por um sargento do destino dado a um preso do Doi-Codi no Rio: morto na tortura, foi enterrado em um trecho de estrada que logo seria asfaltado. Não foram só os criminosos da oficialidade argentina que jogaram presos de avião ao mar. Bem antes dos argentinos, o brigadeiro Burnier, guru de tantos nas Forças Armadas, já lançara a idéia aqui, como denunciou (e pagou pelo restante da vida) o bravo capitão Sérgio Miranda Carvalho.
Que registros terão deixado por aí os que não se limitaram à tortura, como autores, comandantes e outros? Em relação aos desaparecidos do Araguaia o risco não é menor, se encontrados os seus despojos. Ali foram feitas monstruosidades que, se submetidas a um tribunal como os que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, também levariam a fuzilamentos e enforcamentos. Se for achado corpo sem cabeça, é isso mesmo: decapitação de preso, até decapitação de gente desarmada, indefesa. Foi da temida comprovação de crimes militares desse gênero que partiu, e se mantém, a recusa à abertura de arquivos relativos à guerrilha do Araguaia.
A repressão acima das leis levou a transgressões que não se contiveram em práticas repressoras. A pretexto, e depois sem se ocupar com pretextos, de prover locomoção disfarçada para agentes dos serviços militares, muitos civis perderam seus automóveis. Roubados mesmo, como outros perderam bens em sortidas de "repressão" a moradias particulares. Além de roubos que deram em inquéritos e processos na justiça militar. Um deles, narrado aqui há muito tempo, foi até humorístico: um vasto aparato acompanhou, desde o Rio Grande do Sul, um carregamento de botas militares que adotava percurso incomum, e certamente levaria seus seguidores militares a um foco subversivo. No destino, foi constatado que se tratava do desvio de estoques do Exército, feito por oficiais do Exército (entre os quais um ex-craque da seleção brasileira de basquete), para venda no interior de São Paulo. Enquanto o comboio ladrão varava estradas, presos eram torturados para identificar os imaginados subversivos da operação botina.
O Puma explodido no Riocentro nunca teve sua origem considerada a propósito do atentado. Por coincidência, um Puma com todas as mesmas características identificadoras desapareceu de sua proprietária, dona, também, de uma butique na cidade de São Paulo. Por outra coincidência, o usual era o roubo de carros fora do Estado onde passariam a trafegar, acobertados pela alegação de que seus "proprietários" eram da repressão. E, na mesma linha, um outro gênero: a conexão, para proveitos pessoais, com atividades contraventoras e com grupos criminais. Por ser o mais notório, não é único o caso do capitão Guimarães, do Doi-Codi, que se tornou general da contravenção, no jogo do bicho e outras atividades.
A participação de militares brasileiros na Operação Condor está razoavelmente conhecida. Mas as Forças Armadas brasileiras deram contribuição importante ao golpe de Estado no Uruguai e tiveram participações comprometedoras no golpe de Pinochet. A ação internacional violou tanto leis brasileiras, como leis e tratados internacionais de que o Brasil já era signatário, inclusive a Carta da ONU. As violações dependeram de ordens e providências que se transformaram, com o tempo, em documentos que seus detentores temem como explosivos.
As razões para a recusa à abertura de arquivos são muito maiores do que a solidariedade por espírito de corporação.


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