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JANIO DE FREITAS
Os papéis do horror
Há 30 anos, ou desde que os
civis recuperaram o direito
de governar o Brasil, a abertura
dos arquivos da ditadura é reclamada, mas nunca se questionou
devidamente a motivação dos
militares para seu tamanho horror a tal medida. Deu-se como estabelecido, meio por alto, que a
tortura em quartéis e o encobrimento dos seus autores aciona o
espírito de corporação dos militares.
A breve explicação é inegável,
mas não reflete toda a gravidade
do que está por trás da atitude
dos militares. A tortura praticada
no Exército, Marinha e Aeronáutica começou a ser narrada por
suas vítimas ainda na ditadura,
quando de interrogatórios em julgamentos. Cedo ficou documentada, portanto, em partes inseparáveis de processos depois recolhidos aos depósitos judiciais. Apesar de menos ampla do que deveria, a narrativa pública da tortura, pela imprensa outra vez liberalizada, deu conhecimento do
que se passara a todo o país. A
omissão acovardada dos poderes
públicos foi suprida pelo trabalho
valiosíssimo do "Tortura Nunca
Mais" e outras entidades, que levantaram e publicaram os relatos
das vítimas e a identificação dos
torturadores.
Com isso, a resistência dos militares à abertura de arquivos pouco acrescenta à proteção dos torturadores e de seus comandos,
não menos comprometidos. Mas
a tortura não é tudo o que pode
surgir de arquivos que, para começar os problemas dos militares,
nem eles sabem o que contêm. Os
milhares de documentos da repressão agora encontrados em
Salvador e Porto Alegre são apenas dois exemplos do que há por
aí. O que nos leva a aplaudir a
imprevidência e a desorganização dos militares.
No problema dos presos desaparecidos há casos pavorosos. Com
testemunhas, há anos ouvi o coronel Heitor Linhares contar, indignado, que soubera por um sargento do destino dado a um preso
do Doi-Codi no Rio: morto na tortura, foi enterrado em um trecho
de estrada que logo seria asfaltado. Não foram só os criminosos
da oficialidade argentina que jogaram presos de avião ao mar.
Bem antes dos argentinos, o brigadeiro Burnier, guru de tantos
nas Forças Armadas, já lançara a
idéia aqui, como denunciou (e
pagou pelo restante da vida) o
bravo capitão Sérgio Miranda
Carvalho.
Que registros terão deixado por
aí os que não se limitaram à tortura, como autores, comandantes
e outros? Em relação aos desaparecidos do Araguaia o risco não é
menor, se encontrados os seus
despojos. Ali foram feitas monstruosidades que, se submetidas a
um tribunal como os que se seguiram à Segunda Guerra Mundial,
também levariam a fuzilamentos
e enforcamentos. Se for achado
corpo sem cabeça, é isso mesmo:
decapitação de preso, até decapitação de gente desarmada, indefesa. Foi da temida comprovação
de crimes militares desse gênero
que partiu, e se mantém, a recusa
à abertura de arquivos relativos à
guerrilha do Araguaia.
A repressão acima das leis levou
a transgressões que não se contiveram em práticas repressoras. A
pretexto, e depois sem se ocupar
com pretextos, de prover locomoção disfarçada para agentes dos
serviços militares, muitos civis
perderam seus automóveis. Roubados mesmo, como outros perderam bens em sortidas de "repressão" a moradias particulares.
Além de roubos que deram em inquéritos e processos na justiça militar. Um deles, narrado aqui há
muito tempo, foi até humorístico:
um vasto aparato acompanhou,
desde o Rio Grande do Sul, um
carregamento de botas militares
que adotava percurso incomum, e
certamente levaria seus seguidores militares a um foco subversivo. No destino, foi constatado que
se tratava do desvio de estoques
do Exército, feito por oficiais do
Exército (entre os quais um ex-craque da seleção brasileira de
basquete), para venda no interior
de São Paulo. Enquanto o comboio ladrão varava estradas, presos eram torturados para identificar os imaginados subversivos da
operação botina.
O Puma explodido no Riocentro nunca teve sua origem considerada a propósito do atentado.
Por coincidência, um Puma com
todas as mesmas características
identificadoras desapareceu de
sua proprietária, dona, também,
de uma butique na cidade de São
Paulo. Por outra coincidência, o
usual era o roubo de carros fora
do Estado onde passariam a trafegar, acobertados pela alegação
de que seus "proprietários" eram
da repressão. E, na mesma linha,
um outro gênero: a conexão, para
proveitos pessoais, com atividades contraventoras e com grupos
criminais. Por ser o mais notório,
não é único o caso do capitão
Guimarães, do Doi-Codi, que se
tornou general da contravenção,
no jogo do bicho e outras atividades.
A participação de militares brasileiros na Operação Condor está
razoavelmente conhecida. Mas as
Forças Armadas brasileiras deram contribuição importante ao
golpe de Estado no Uruguai e tiveram participações comprometedoras no golpe de Pinochet. A
ação internacional violou tanto
leis brasileiras, como leis e tratados internacionais de que o Brasil
já era signatário, inclusive a Carta da ONU. As violações dependeram de ordens e providências que
se transformaram, com o tempo,
em documentos que seus detentores temem como explosivos.
As razões para a recusa à abertura de arquivos são muito maiores do que a solidariedade por espírito de corporação.
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